LEONARDO SANCHEZ (FOLHAPRESS) – Foi sem qualquer pudor que Ali Abbasi exibiu em Cannes cenas extremamente gráficas de violência e misoginia.

“Holy Spider”, ou aranha sagrada, é um ensaio forte e contundente que versa sobre machismo, hipocrisia, radicalismo e marginalidade, quebrando as expectativas do público a todo instante e tomando um caminho corajoso –e muitas vezes desagradável– para narrar a história de um serial killer.

Ambientado em Meshed, cidade iraniana a cerca de 700 quilômetros de Teerã, em algum momento do início dos anos 2000, “Holy Spider” sucede “Border”, simpática surpresa que Abbasi trouxe a Cannes há quatro anos e que lhe rendeu o prêmio da mostra Um Certo Olhar, destinada a cineastas em início de carreira.

Mais uma vez, sexo e violência são servidos sem cerimônia, embora o cineasta tenha agora abandonado a Dinamarca, onde vive, rumo ao Irã, onde nasceu, para dividir seu tempo entre a investigação de uma jornalista e a rotina homicida de um homem que faz de garotas de programa as suas vítimas.

Sob uma trilha sonora que é puro assombro, a câmera de Abbasi acompanha o serial killer por ruas da cidade, testemunha como voyeur o “trottoir” das prostitutas nas calçadas e o uso incessante que elas fazem do ópio em becos escuros. Já vimos esse tipo de coisa antes, sob a batuta de David Fincher em “Se7en” ou de William Friedkin em “Parceiros da Noite”.

Mas a subversão das convenções vem muito em função do cenário incomum para ambientar esse tipo específico de thriller. Aqui não estamos em algum submundo de Manhattan, mas na segunda maior cidade do Irã, com suas próprias questões de radicalismo religioso. É ali que o assassino concretiza a sua jihad particular contra o vício, como chega a verbalizar a certa altura.

A caracterização do serial killer também encontra uma profundidade rara no cinema mainstream. O homem está empenhado numa caçada religiosa, e o extremismo é só a gramática que dá sentido a neuroses de fundo, mas ele é também um pai amoroso –lição que poderia ser aprendida por realizadores que insistem em retratar assassinos como vilões unidimensionais– e sua densidade é incrementada quando ele começa a manipular a opinião pública em torno das motivações de seus crimes.

A inegável vilania dos assassinatos, em contraste com a fachada de “cidadão de bem” do homicida, ajudam Abbasi a quebrar as expectativas do público a todo momento. Não é o “whodunit” que está em jogo aqui, tampouco o método –como a violência pode sugerir–, mas a torpe ideologia que impulsiona os assassinatos e logo contamina quem lê sobre eles nos jornais.

Na visão oferecida pelo diretor, aquela é uma sociedade corrompida, seja pelo radicalismo religioso, pela falta de ética das autoridades ou pelo patriarcalismo, que tornam as prostitutas e viciadas em drogas alvos de uma “limpeza” violenta, mas também impõem microagressões rotineiras a qualquer mulher presente em cena.

Logo de cara, a jornalista que protagoniza o filme é impedida de fazer check-in num hotel porque é solteira. Ao longo de “Holy Spider”, ela ainda é repreendida por mostrar uma parte do cabelo, por fumar ou porque um antigo chefe a assediou.

O filme toca em temas que ressoam em qualquer canto do mundo –por meio da figura feminina, mas que dialoga também com os perigos da homofobia ou do racismo, por exemplo. Não seria surpresa se “Holy Spider” levasse a Palma de Ouro nesta edição de Cannes.

O filme é incômodo e pode, sim, gerar discussões sobre a banalização da violência. Mas ao mesmo tempo apresenta uma trama em sintonia com os tempos atuais, aliada a um fazer cinematográfico acima da média –realçado, justamente, pela recente onda de assassinos em série nas telas, que costuma ter dificuldade para extrapolar o genérico e maniqueísta. E esse não é um problema para a mão equilibrada de Abbasi.