A Suprema Corte dos Estados Unidos manteve, na sexta-feira (21), o acesso a uma droga abortiva amplamente utilizada no país, suspendendo decisões de tribunais inferiores que impuseram restrições ao uso do medicamento enquanto contestações eram analisadas.

Assim, permanece em vigor, pelo menos enquanto os apelos ocorrerem — potencialmente nos próximos meses –, a aprovação do medicamento mifepristona pela agência reguladora Food and Drug Administration (FDA) dos EUA e as medidas que o tornaram mais acessível.

O movimento é uma vitória significativa para o governo de Joe Biden e seus aliados na comunidade que luta pelo direito ao aborto, que sofreram uma derrota devastadora na Suprema Corte no ano passado, quando a maioria conservadora reverteu o precedente da lei Roe v. Wade, que protegia o direito ao aborto em todo o país.

A ordem breve e não assinada do tribunal não explicou por que atendeu ao pedido do governo Biden e de um fabricante do medicamento. Os juízes Clarence Thomas e Samuel Alito discordaram publicamente; os votos dos demais ministros não foram divulgados.

O caso é a disputa relacionada ao aborto mais importante a chegar ao tribunal superior desde que os juízes anularam a lei Roe v. Wade, levando estados conservadores em todo o país a proibir ou restringir severamente procedimentos abortivos.

A disputa sobre o aborto medicamentoso pode tornar mais difícil para as mulheres terem acesso a isso, mesmo nos estados que ainda a permitem.

Uma questão em jogo é o escopo da autoridade da FDA para regulamentar o mifepristona, um medicamento que a comunidade médica considera seguro e eficaz. A mifepristona tem sido usada por milhões de mulheres em todo o país nas mais de duas décadas em que está no mercado.

O próximo passo no litígio será uma audiência em um tribunal federal de apelações com sede em Nova Orleans em 17 de maio.

“O caso pode voltar aos juízes assim que o 5° Circuito decidir, mas nada vai mudar com relação ao acesso ao mifepristone até e a menos que o tribunal considere o mérito do caso e fique do lado dos adversários”, disse Steve Vladeck, Analista da Suprema Corte da CNN e professor da Escola de Direito da Universidade do Texas.

“Isso não vai acontecer em um bom tempo – se é que irá”, adicionou.

O presidente Joe Biden elogiou a decisão através de um comunicado: “Como resultado da suspensão da Suprema Corte, o mifepristone permanece disponível e aprovado para uso seguro e eficaz enquanto continuamos essa luta nos tribunais”.

O chefe de Estado também pediu aos americanos “que usem seu voto como voz e elejam um Congresso que aprove uma lei restaurando as proteções de Roe x Wade”.

Um advogado do grupo de médicos que apresentou a contestação minimizou a ordem. “Como é prática comum, a Suprema Corte decidiu manter o status quo”, afirmou Erik Baptist, advogado da Alliance Defending Freedom, em um comunicado.

“Nosso caso que busca colocar a saúde das mulheres acima da política continua de forma acelerada nos tribunais inferiores”, acrescentou Baptist. “Estamos ansiosos por um resultado final neste caso que responsabilize a FDA”, ocomplementou.

Juiz da Corte sugere que governo pode ter ignorado proibição do mifepristona

Em sua discordância, o juiz Samuel Alito pontuou que votou pelo indeferimento do pedido de suspensão porque a 5° Circuito agendou uma audiência acelerada sobre o mérito da disputa.

Ele sugeriu que permitir que as restrições permaneçam em vigor não levaria a “nenhum dano real durante o período presumivelmente curto em questão”.

Alito escreveu que a suspensão não “retiraria o mifepristona do mercado”, mas simplesmente restauraria “as circunstâncias que existiam” desde o momento em que o medicamento foi aprovado em 2000 até quando a FDA aprovou novos regulamentos para facilitar o acesso à pílula a partir de 2016.

“O governo não dissipou dúvidas legítimas de que obedeceria a uma ordem desfavorável nesses casos, muito menos de que optaria por uma ação de execução à qual tem fortes objeções”, destacou.

Nenhum outro juiz se juntou a sua dissidência.

Defensores das pílulas abortivas reagem

A Danco Laboratories, fabricante do medicamento que interveio no caso para defender a aprovação do mifepristone, aplaudiu a ordem para preservar “acesso crucial a um medicamento no qual milhões de pacientes confiam”.

“A reversão dos tribunais inferiores das aprovações de longa data da FDA causou caos generalizado entre provedores, pacientes e sistemas de saúde. A ordem de hoje fornece continuidade a todos os envolvidos enquanto litigamos as questões subjacentes neste caso”, avaliou Jessica Ellsworth, advogada de Danco, em comunicado.

O outro fabricante da droga, GenBioPro, não interveio no processo, mas a aprovação do FDA para seu produto – a versão genérica da pílula abortiva – teria sido suspensa se a Suprema Corte tivesse mantido as decisões do tribunal inferior em vigor.

“A decisão da Suprema Corte de hoje mantém o mifepristone legal e disponível”, observoy o CEO da empresa, Evan Masingill, em um comunicado.

“A GenBioPro continua a atender seus clientes e está comprometida em fornecer nossos medicamentos essenciais baseados em evidências a todos que precisam”, complementou.

O secretário do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA, Xavier Becerra, disse que a decisão foi “um passo importante na direção certa”, já que o governo luta “vigorosamente” para “defender a autoridade independente e especializada do FDA para revisar, aprovar e regular uma ampla gama de medicamentos prescritos”.

“Estamos confiantes de que a lei está do nosso lado e continuamos focados em prevalecer no tribunal”, afirmou.

O Departamento de Justiça se recusou a comentar o caso.

Decisões de tribunais inferiores questionaram avaliações da FDA

A disputa jurídica começou em novembro do ano passado, quando um grupo que representa os médicos que se opõem ao aborto entrou com uma ação, argumentando que a FDA não havia feito o suficiente para garantir a segurança do medicamento cerca de duas décadas antes.

O juiz distrital dos EUA Matthew Kacsmaryk, indicado por Trump, emitiu uma decisão ampla em 7 de abril que bloqueou a aprovação do medicamento, bem como as mudanças que a agência fez nos anos subsequentes para tornar a pílula mais acessível.

Ele, no entanto, atrasou a data efetiva de sua decisão por sete dias para dar tempo para um recurso.

Rejeitando o consenso da comunidade médica, Kacsmaryk levantou questões sobre a segurança da droga, juntando em sua opinião o jargão frequentemente usado pelos opositores do aborto.

Ele rotulou os médicos que realizam o procedimento de “abortistas” e explicou que rejeitaria o termo “feto” em favor do mais inflamatório “humano não nascido”. Em vez de se referir ao procedimento como um “aborto medicamentoso”, ele insistiu em chamá-lo de “aborto químico”.

A FDA, afirmou Kacsmaryk a certa altura, “concordou com suas legítimas preocupações de segurança – em violação de seu dever estatutário – com base em raciocínio claramente infundado e estudos que não sustentavam suas conclusões”.

As principais associações médicas repreenderam essas afirmações sobre os perigos da droga, e a mifepristona demonstrou ser mais segura do que medicamentos comuns como a penicilina e o viagra.

Em uma questão-chave, o juiz insistiu que os que se queixavam – médicos que não usam ou prescrevem o medicamento – tinham o direito legal de estar no tribunal para apresentar seu caso, porque alegam que o uso do medicamento poderia “sobrecarregar” o sistema de saúde.

Atordoados com a amplitude da decisão, o governo Biden e a Danco, fabricante do medicamento, entraram com um recurso no Tribunal de Apelações do 5º Circuito dos EUA.

A corte acabou deixando de lado a aprovação do medicamento pelo governo, mas concordou com Kacsmaryk que o acesso poderia ser limitado.

Um painel dividido de três juízes ordenou o retorno ao regime mais rígido da FDA anterior a 2016 em relação ao medicamento, que impede o envio da pílula a pacientes que a obtiveram por meio de telessaúde ou visitas virtuais com seus fornecedores, em vez de viajar para uma clínica ou hospital para obter o medicamento pessoalmente.

Também revogou efetivamente a aprovação de 2019 da versão genérica do medicamento. As restrições também afetam as instruções no rótulo do medicamento, encurtando a janela de obtenção da pílula para sete semanas de gravidez, em vez de 10.

É possível, no entanto, que mesmo com a decisão em vigor, alguns provedores possam ir “off-label” — não seguir indicações — e continuar a prescrever mifepristona para até 10 semanas.

O 5º Circuito alegou que as regras da FDA para o medicamento criaram “um regime extremamente incomum” e que os médicos antiaborto tinham o direito de processá-lo porque seriam “necessariamente prejudicados pelas consequências” da decisão da agência “de cortar dos médicos a prescrição e administração de mifepristona.”

O tribunal de apelações disse que o estatuto de limitações provavelmente impedia os demandantes de contestar a aprovação de 2000, mas que provavelmente teriam sucesso em suas reivindicações contra os movimentos mais recentes da FDA para ajustar as regras em torno do medicamento.

O tribunal acusou a FDA de ter uma “abordagem de cabeça de avestruz na areia” para a droga que era “profundamente preocupante”.

Na semana passada, Biden lamentou como os tribunais inferiores lidaram com o caso.

“Acho ultrajante o que o tribunal fez, em relação à conclusão de que eles vão anular a FDA sobre se algo é seguro ou não. Acho que está fora do domínio deles”, analisou.

Pedidos de intervenção à Suprema Corte

A administração Biden pediu à Suprema Corte para intervir na semana passada, com processos judiciais da Procuradora-Geral Elizabeth Prelogar citando “ordens sem precedentes do tribunal inferior revogando o julgamento científico da FDA e desencadeando o caos regulatório ao suspender as condições de uso do mifepristona aprovadas pela agência”.

A implementação das mudanças nas regras do mifepristona ordenadas pelos tribunais inferiores “negaria às mulheres o acesso legal a um medicamento que a FDA considera uma alternativa segura e eficaz ao aborto cirúrgico invasivo”, ao mesmo tempo em que colocaria a agência e as entidades que eles regulam “em uma posição impossível”.

A Danco Laboratories, fabricante da versão de marca do medicamento que interveio no caso para defender a aprovação do mifepristona pela FDA, também solicitou a intervenção do tribunal superior.

Deixar as decisões do tribunal de primeira instância em vigor “prejudicaria irreparavelmente a Danco, que será incapaz de conduzir seus negócios em todo o país e cumprir suas obrigações legais”, ressaltou o advogado da empresa nos autos.

“A falta de tutela de urgência deste Tribunal também prejudicará as mulheres, o sistema de saúde, a indústria farmacêutica, os interesses de soberania dos Estados e a separação de poderes”, adicionou o advogado Ellsworth aos ministros.

Os médicos antiaborto que apresentaram o caso disseram aos juízes que as restrições impostas pelo tribunal de apelações à droga eram “razoáveis”.

“As decisões meticulosas dos tribunais inferiores não questionam as determinações científicas da agência; eles apenas exigem que a agência siga a lei”, argumentaram os desafiantes.

Este conteúdo foi criado originalmente em inglês.

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Fonte: CNN Brasil