• Elizabeth Preston
  • Knowable Magazine*

9 junho 2022

Pessoa dormindo no carro

Crédito, NurPhoto/Getty Images

Acredita-se que nossas frenéticas vidas modernas nos fazem dormir mal, mas nossa insônia pode ter se originado no nosso passado evolutivo

Em noites sem chuva, os caçadores-coletores San da Namíbia muitas vezes dormem sob as estrelas.

Eles não têm lançamentos na Netflix para mantê-los acordados — sequer têm luz elétrica, na verdade. Mesmo assim, quando se levantam pela manhã, não tiveram mais horas de sono que um morador típico das cidades da Europa ou da América do Norte que permaneceu rolando a tela do seu smartphone.

Pesquisas demonstram que as pessoas das sociedades não industriais — as mais próximas do tipo de ambiente onde nossa espécie evoluiu — dormem, em média, menos de sete horas por noite, segundo o antropólogo evolutivo David Samson, da Universidade de Toronto em Mississauga, no Canadá.

Isso é surpreendente, se considerarmos nossos parentes animais mais próximos. Os seres humanos dormem menos que qualquer chimpanzé, macaco ou lêmure estudado pelos cientistas.

Os chimpanzés dormem cerca de 9,5 horas a cada período de 24 horas. Os saguis-cabeça-de-algodão dormem cerca de 13 horas no mesmo intervalo. Já os macacos-da-noite de pescoço cinza tecnicamente são noturnos, mas, na verdade, eles passam muito pouco tempo acordados, dormindo 17 horas por dia.

Samson chama essa discrepância de paradoxo do sono humano. “Como é possível que estejamos dormindo menos que qualquer outro primata?”, questiona Samson.

Sabe-se que o sono é importante para a nossa memória, funções imunológicas e outros aspectos da saúde. Um modelo de previsão do sono dos primatas, baseado em fatores como a massa do corpo, o tamanho do cérebro e a alimentação, concluiu que os seres humanos deveriam dormir cerca de 9,5 horas a cada 24 horas, e não sete. Logo, “algo de estranho está acontecendo”, afirma ele.

As pesquisas de Samson e de outros pesquisadores em primatas e populações humanas não industriais revelaram os vários fatores que tornam o sono humano algo incomum. Nós passamos menos horas dormindo que os nossos parentes mais próximos e a maior parte da noite na fase de sono conhecida como movimento rápido dos olhos (REM, na sigla em inglês).

Os motivos dos nossos estranhos hábitos de sono ainda estão sendo discutidos, mas provavelmente podem ser encontrados na história de como nos tornamos seres humanos.

Quanto tempo os primatas dormem por dia. Duração do sono em horas. .

Milhões de anos atrás, nossos ancestrais viviam — e, provavelmente, dormiam — em árvores.

Os chimpanzés e outros grandes símios da atualidade ainda dormem em plataformas ou leitos temporários em árvores. Eles dobram ou partem ramos para criar uma espécie de tigela, que podem forrar com ramos folhosos. Alguns, como os gorilas, às vezes também constroem camas no solo.

Evolução para menos sono

Nossos ancestrais saíram das árvores para viver no solo e, em algum momento, começaram também a dormir no chão. Isso fez com que eles abandonassem todos os benefícios de dormir nas árvores, incluindo a relativa segurança contra predadores, como os leões.

Os fósseis dos nossos ancestrais não revelam a qualidade do seu repouso nessas condições. Por isso, para aprender como os antigos humanos dormiam, os antropólogos estudam seus melhores representantes disponíveis: as sociedades não industriais contemporâneas.

“É uma incrível oportunidade e uma honra trabalhar com essas comunidades”, afirma Samson, que trabalhou com os caçadores-coletadores Hadza da Tanzânia, além de diversos grupos em Madagascar, na Guatemala e em outros países. Os participantes do estudo normalmente usam um aparelho chamado Actiwatch, que é similar aos monitores Fitbit, mas com um sensor de luz adicional, para registrar seus padrões de sono.

Gandhi Yetish, antropólogo e ecologista da evolução humana da Universidade da Califórnia em Los Angeles, nos Estados Unidos, também dedicou seu tempo junto aos Hadza, além dos Tsimane na Bolívia e dos San, na Namíbia. Em um estudo de 2015, ele avaliou o sono dos três grupos e concluiu que eles dormiam, em média, apenas 5,7 a 7,1 horas por dia.

Essa conclusão indica que os seres humanos parecem ter evoluído para precisar de menos sono que nossos parentes primatas. Samson demonstrou em uma análise em 2018 que nós conseguimos isso desativando o tempo fora do sono REM.

REM é a fase do sono mais associada com os sonhos nítidos. Ou seja, imaginando que outros primatas sonhem de forma similar, podemos passar uma maior parte da noite que eles sonhando. E também temos flexibilidade quanto ao momento em que conseguimos essas horas com os olhos fechados.

Para reconstruir a história de como evoluiu o sono humano, Samson formulou o que ele chama de hipótese do sono social, descrita na edição de 2021 da Annual Review of Anthropology. Ele acredita que a evolução do sono humano está relacionada com a segurança – especificamente, a segurança em números.

Samson afirma que o sono rápido, predominantemente em REM e em horários flexíveis, provavelmente evoluiu devido à ameaça dos predadores quando os seres humanos começaram a dormir no solo. E outro fator que ele acha fundamental para dormir com segurança no solo era repousar em grupo.

“Devemos pensar nos primeiros grupos e acampamentos humanos como a concha do caracol”, segundo ele. Grupos de seres humanos podem ter compartilhado abrigos simples. Uma fogueira poderá ter aquecido as pessoas e afastado os insetos. Alguns membros do grupo podem ter dormido enquanto outros ficavam de guarda. “Dentro da segurança dessa concha social, você poderia voltar e tirar uma soneca a qualquer momento”, imagina Samson.

Influência dos predadores?

É verdade que Samson e Yetish discordam sobre a prevalência das sonecas nos grupos não industriais de hoje em dia. Samson relata sonecas frequentes entre os Hadza e uma população de Madagascar, enquanto Yetish afirma que suas experiências no campo indicam que as sonecas não são algo frequente.

Samson também acredita que essas conchas de sono teriam facilitado a jornada dos nossos antigos ancestrais para fora da África, até climas mais frios. Por isso, ele considera que o sono é uma parte fundamental da história da evolução humana.

E faz sentido que a ameaça dos predadores possa ter levado os seres humanos a dormir menos que os primatas que vivem em árvores, segundo Isabella Capellini, ecologista evolutiva da Universidade Queen’s de Belfast, no Reino Unido. Em um estudo de 2008, ela e seus colegas concluíram que os mamíferos com maior risco de ataque de predadores, em média, dormem menos.

Chimpanzé dormindo

Crédito, Alamy

Embora os chimpanzés sejam nossos parentes primatas mais próximos ainda vivos, seus padrões de sono são muito diferentes dos nossos

Mas Capellini não tem certeza de que o sono humano seja tão diferente dos outros primatas quanto parece. Ela indica que os dados existentes sobre o sono dos primatas vêm de animais em cativeiro. “Ainda não sabemos muito sobre o sono dos animais no ambiente selvagem”, segundo ela.

No zoológico ou no laboratório, os animais poderão dormir menos que na natureza, devido ao estresse. Ou poderão dormir mais, “simplesmente porque os animais estão entediados”, segundo Capellini. E as condições padrão de laboratório — 12 horas de luz e 12 horas de escuro — poderão não coincidir com o experimentado pelo animal na natureza ao longo do ano.

O neurocientista Niels Rattenborg, que estuda o sono das aves no Instituto de Ornitologia Max Planck, na Alemanha, concorda que a narrativa de Samson sobre a evolução do sono humano é interessante. Mas com uma ressalva: “Depende muito de saber se nós medimos o sono dos outros primatas de forma precisa”. E existem motivos para suspeitar da nossa precisão.

Em um estudo de 2008, Rattenborg e seus colegas conectaram aparelhos de eletroencefalografia (EEG) a três preguiças selvagens e concluíram que os animais dormiam cerca de 9,5 horas por dia — enquanto um estudo anterior com preguiças em cativeiro havia registrado cerca de 16 horas de sono diárias.

‘Sono social’

Ter dados de mais animais selvagens ajudaria os pesquisadores do sono. “Mas, tecnicamente, é um desafio fazer isso”, afirma Rattenborg. “As preguiças submeteram-se ao procedimento, mas tenho a sensação de que os primatas passariam muito tempo tentando arrancar os aparelhos.”

Se os cientistas tivessem um quadro mais claro do sono dos primatas no ambiente selvagem, talvez pudéssemos concluir que o sono humano não é tão excepcionalmente curto quanto parece. “Sempre que alguém afirma que os seres humanos são especiais sobre alguma coisa, quando começamos a ter mais dados, percebemos que não somos tão especiais assim”, segundo Capellini.

Gandhi Yetish, que estuda o sono em sociedades pequenas, colaborou com as pesquisas de Samson. “Não acho que o sono social, como ele descreve, seja uma solução para o problema de manter a segurança à noite”, afirma Yetish. Mas acrescenta: “Não acho que seja a única solução”.

Ele observa, por exemplo, que os Tsimane às vezes têm paredes nas suas casas, que fornecem alguma segurança sem vigilância humana. E Yetish ouviu pessoas dos grupos que ele estuda contarem na manhã seguinte exatamente quais animais eles ouviram durante a noite. Os sons acordam a maioria das pessoas à noite, oferecendo outro possível mecanismo de proteção.

Yetish afirma que dormir em grupos, com ou sem ameaças de predadores, também é uma extensão natural da forma como as pessoas nas pequenas sociedades vivem durante o dia. “Na minha opinião, as pessoas quase nunca estão sozinhas nesse tipo de comunidade.”

Ele descreve como é uma noite típica com os Tsimane. Depois de passar o dia trabalhando em diversas tarefas, um grupo se reúne em volta de uma fogueira enquanto o alimento é cozido. Eles compartilham a refeição, depois permanecem junto à fogueira no escuro. As mães e as crianças começam a ir dormir, enquanto outros ficam acordados, conversando e contando histórias.

Pessoas reunidas em volta de fogueira

Crédito, Jorge Fernández/Getty Images

Contar histórias em volta da fogueira depois do anoitecer é algo comum em muitas sociedades não industriais

Por isso, Yetish especula que nossos ancestrais humanos podem ter trocado algumas horas de sono pelo compartilhamento de informações e cultura em volta do fogo.

“Você repentinamente fez com que essas horas de escuridão se tornassem bastante produtivas”, segundo ele. Nossos ancestrais podem ter reduzido seu sono para um período mais curto porque tinham coisas mais importantes para fazer no restante da noite.

É claro que o quanto nós dormimos é uma questão diferente de o quanto nós gostaríamos de dormir. David Samson e outros pesquisadores perguntaram aos participantes do estudo entre os Hadza como eles se sentiam sobre o próprio sono.

A equipe relatou em 2017 que, das 37 pessoas pesquisadas, 35 afirmaram que dormiram “o suficiente”. O tempo médio de sono daquelas pessoas durante o estudo foi de cerca de 6,25 horas por noite. Mas eles acordavam com frequência e precisavam de mais de nove horas na cama para conseguir essas 6,25 horas de olhos fechados.

Por outro lado, um estudo de 2016 com quase 500 pessoas em Chicago, nos Estados Unidos, concluiu que elas realmente passavam quase todo o seu tempo na cama dormindo e conseguiam pelo menos o mesmo sono total dos Hadza. Mas, em uma pesquisa entre adultos norte-americanos em 2020, quase 87% dos participantes afirmaram que, pelo menos um dia por semana, eles não se sentiam descansados.

E por que não? Samson e Yetish afirmam que os nossos problemas de sono podem ter a ver com estresse ou ritmos circadianos desregulados. Ou talvez estejamos sentido falta da multidão com a qual evoluímos para dormir, segundo Samson.

Quando temos dificuldade para dormir, podemos estar experimentando um desequilíbrio entre a forma como evoluímos e como vivemos agora. “Estamos basicamente isolados e isso pode estar influenciando nosso sono”, afirma ele.

A melhor compreensão de como evoluiu o sono humano poderá ajudar as pessoas a descansar melhor, segundo Samson, ou ajudá-las a sentir-se melhor com o repouso que já estão conseguindo.

“Muitas pessoas no hemisfério norte e no Ocidente gostam de problematizar seu sono”, afirma ele. Mas talvez a insônia, na verdade, seja hipervigilância — um superpoder evolutivo. “Provavelmente foi uma grande adaptação quando nossos ancestrais dormiam na savana.”

Já Yetish afirma que o estudo do sono nas sociedades pequenas mudou “completamente” sua própria perspectiva.

“Existe muito esforço e atenção consciente dedicada ao sono no Ocidente, o que não acontece nesses ambientes”, ele conta. “As pessoas não estão tentando dormir por um certo período de tempo. Elas simplesmente dormem.”

* Este artigo foi publicado originalmente na revista jornalística independente Knowable, da editora norte-americana Annual Reviews, e republicado pelo site BBC Future. Leia a versão original (em inglês).

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Fonte: BBC