Pilha de livros com martelo de juiz em cima

Crédito, Getty Images

  • Author, Rone Carvalho
  • Role, De São José do Rio Preto (SP) para a BBC News Brasil
  • Há 1 hora

Quando Brenda Moura escolheu cursar Direito, não imaginava que estava prestes a ingressar em uma carreira tão procurada pelos brasileiros.

Recém-aprovada no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ela diz que somente se deu conta quando passou a exercer a advocacia.

“Confesso que deu um frio na barriga, porque de fato tem muito aluno de Direito e advogado no Brasil. Mas acredito que, quando você mostra seu diferencial, você consegue seu espaço. Inclusive, hoje a internet ajuda muito na divulgação do nosso trabalho.”

Assim como Brenda, cerca de 120 mil brasileiros fazem todos os anos a prova para poder exercer a advocacia. Não é à toa que o Brasil tem a maior proporção de advogados por habitantes do mundo.

No país, existe um profissional da advocacia para cada 164 brasileiros, enquanto, nos Estados Unidos, por exemplo, há um advogado para cada 253 habitantes.

Um estudo da OAB, com base em dados da International Bar Association (IBA), aponta que, em números absolutos de advogados, só a Índia fica à frente do Brasil, com pouco mais de 2 milhões de advogados.

Brenda segura livro e posa para foto

Crédito, Arquivo Pessoal

Brenda ingressou na advocacia há menos de dois anos e já sente na pele os impactos do grande número de advogados no Brasil

Entretanto, como a população do país asiático é muito maior do que a brasileira (1,4 bilhão de indianos frente a 212,7 milhões de brasileiros), a Índia tem uma proporção menor de advogados em relação ao número de habitantes: um advogado para cada 700 habitantes.

O grande número de profissionais da advocacia no Brasil fica claro em mais comparações com outros países, a começar pela vizinha Argentina.

Em uma população de 46,1 milhões de pessoas, segundo estimativa da Organização das Nações Unidas (ONU), existem 126 mil advogados — número informado pela Federación Argentina de Colegios de Abogados (FACA). Logo, uma proporção bem mais tímida do que a brasileira: 1 advogado para 365 pessoas.

Gráfico de advogados por habitante

Em Portugal, entre os 10 milhões de habitantes, 16 mil são profissionais da advocacia: 1 advogado para cada 625.

O Reino Unido tem, por sua vez, 146 mil advogados em uma população de 68,8 milhões de pessoas — 1 advogado para 471 habitantes.

No Brasil, segundo a OAB, 1,3 milhão de brasileiros exercem regulamente a advocacia como profissão.

Em 2008, o Brasil tinha um advogado para cada 322 habitantes. Eram 571,3 profissionais da advocacia entre 183,9 milhões de brasileiros.

Na época, o país ocupava a terceira posição no ranking mundial entre os países com o maior número de advogados em relação ao número de habitantes, atrás da Índia e dos Estados Unidos.

O número de advogados, hoje em dia, somente não é maior porque, em média, 45% dos 120 mil alunos que prestam o Exame da Ordem todos os anos, escolhem outras profissões ou ingressam em concursos públicos, de acordo com estudo da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES).

Aumento exponencial de cursos

O apelido “terra dos advogados” foi conquistado, na última década, após o Brasil alcançar primeira posição no ranking de países com maior número de advogados em relação ao número de habitantes, principalmente, pelo crescimento do número de cursos de Direito.

Para ter uma ideia, em 1995, o Brasil tinha 235 cursos na área. Em 2023, são 1.896 — um aumento de 706%. Só nos últimos cinco anos, foram criados 697 cursos. Segundo a OAB, o Brasil é o país com o maior número de cursos de Direito no mundo.

Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam diversas razões para o sucesso desta formação profissional entre os brasileiros.

O primeiro é relacionado à tradição histórica. Isso porque a graduação na área jurídica foi uma das primeiras oferecidas no país.

“As profissões ligadas ao conhecimento jurídico sempre tiveram um apelo social importante. Ao lado de Medicina e Engenharia, Direito permitia àquelas e àqueles que se bacharelavam o exercício de profissões social e financeiramente mais valorizadas como advocacia”, aponta Antonella Galindo, vice-diretora da Faculdade de Direito do Recife.

Marco Aurélio de Lima Choy

Crédito, Raul Spinasse – Novo Selo Comunicação

Marco Aurélio de Lima Choy, presidente da Comissão Nacional do Exame de Ordem, é contrário liberação de novos cursos de direito no Brasil na modalidade à distância

“Além disso, o que parece ter ocorrido de 1988 para cá, com a promulgação da Constituição, foi um prestígio ainda maior desse tipo de conhecimento. Com menos autoritarismo e arbítrio (comum em ditaduras) e maior necessidade de construção de argumentos e teses sólidas e convincentes na perspectiva de um Estado democrático de direito, profissionais jurídicos tiveram maior valorização”, diz a professora.

Claudinor Roberto Barbiero, presidente da comissão especial de ensino jurídico da OAB de São Paulo, também aponta a procura cada vez maior de brasileiros por concursos públicos.

“Em um país de muitas incertezas políticas e econômicas, é cada vez maior o número de brasileiros que buscam nos concursos públicos a tão sonhada estabilidade e, normalmente, os concursos públicos com melhor remuneração são da área jurídica.”

Gráfico de cursos de direito mostra aumento até 2023

Diferente de outros cursos de graduação, em que apenas a formação superior permite que o graduado exerça a profissão, no Direito, o estudante formado é apenas um bacharel que precisa ser aprovado em um concurso público ou no Exame da OAB para exercer as profissões jurídicas mais conhecidas.

“Quem cursa Direito, por exemplo, pode ser advogado, mas seguir outras funções ligadas à aplicação da lei, como de juiz, promotor do ministério público e alguns cargos da segurança pública, como o de delegado de polícia”, explica Barbiero.

Também é apontada por especialistas, entre os motivos, a forte midiatização do Poder Judiciário, principalmente, após a Operação Lava Jato, que despertou o interesse dos brasileiros pelas profissões da área.

“Agora, o que temos visto muito nas instituições de ensino é um número crescente de brasileiros procurando o Direito como uma segunda formação superior. Hoje, por exemplo, temos muitos presidentes de grandes empresas que são formados na área jurídica”, afirma Bruno Coimbra, assessor da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES).

‘Quantidade não significa qualidade’

Com o aumento exponencial de cursos de Direito no país, a OAB criou um levantamento próprio para aferir sua qualidade.

O último, realizado em 2022, mostra que dos 1.896 cursos aptos a funcionar no território brasileiro, apenas 11% foram considerados como de boa qualidade.

“Infelizmente, é um número preocupante. Não tenho dúvida que, se outros ramos do conhecimento fizessem o mesmo levantamento sobre os cursos do Brasil, teríamos um diagnóstico parecido”, diz Marco Aurélio de Lima Choy, presidente da Comissão Nacional do Exame de Ordem.

Para fazer a avaliação, a OAB leva em conta os resultados de aprovação dos alunos matriculados da instituição de ensino nos últimos Exames da Ordem e na prova do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade).

Cruzando esses dados, é gerado um indicador de qualidade que varia de 0 a 10. Se a nota for de 7 para cima, o curso recebe o Selo OAB.

Apesar de a OAB fazer sua própria aferição, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão ligado ao Ministério da Educação (MEC), é o responsável no Brasil pela avaliação da qualidade dos cursos de graduação e pós-graduação.

No entanto, gestores educacionais argumentam que o modelo está ultrapassado e necessita de uma reformulação, com o objetivo de melhor aferir a qualidade dos cursos oferecidos no país.

“Esse é um problema antigo que atinge todo o ensino superior, público e privado. Existe um sistema de avaliação executado pelo Inep, mas que é ultrapassado. Hoje, ele pouco avalia e poucas informações oferecem sobre a qualidade dos cursos”, ressalta Rodrigo Capelato, diretor executivo da Semesp, que representa instituições de ensino superior do Brasil.

Número pode crescer mais

Choy aponta que o Brasil pode ganhar ainda mais cursos de Direito nos próximos anos, porque está em discussão no Ministério da Educação a autorização para que instituições de ensino superior do país também ofereçam a formação na modalidade à distância, conhecida pela sigla EAD.

A OAB é contrária à autorização de novos cursos de Direito na modalidade à distância. “Nossa preocupação não é quantitativa, mas qualitativa”, diz Choy.

“Se no Brasil, em média, apenas 20% dos candidatos passam na primeira fase da OAB, que é um exame sem concorrência e que o candidato necessita acertar no mínimo mais da metade da prova para ser aprovado, significa que primeiro precisamos melhorar os cursos presenciais que já oferecemos do que oferecer mais vagas”.

Atualmente, o curso, que somente pode ser oferecido na modalidade presencial, concentra 750 mil matrículas.

“Diferente da Medicina, o Direito é um curso mais fácil e de menor custo de ser implantado pelas instituições de ensino superior. Isso também ajuda a explicar esse aumento do número de cursos nos últimos anos”, diz Capelato.

Por outro lado, entidades que representam instituições de ensino superior defendem a abertura de cursos de direito na modalidade à distância, desde que os métodos de avaliação de todos os cursos oferecidos no país sejam revistos.

“Por vezes, quando se crítica o EAD, esse julgamento normalmente se restringe à modalidade. Mas, na prática, o que precisamos discutir é a importância da fiscalização da qualidade dos cursos de graduação do país”, afirma Coimbra.

Para Antonio Freitas, pró-reitor da Faculdade Getúlio Vargas (FGV), a qualidade do ensino jurídico independe do curso ser na modalidade presencial ou com mediação tecnológica.

“Existem cursos bons e ruins, independente da modalidade. A mediação tecnológica, no Direito, ajudará os profissionais competentes e penalizará os profissionais medíocres. Ou seja, a tecnologia bem usada alavancará os cursos e os egressos”, defende Freitas.

O que diz o Ministério da Educação

O Ministério da Educação disse, por meio de not, que a oferta de cursos de educação superior, bem como o aumento de vagas para os já existentes, depende de autorização do órgão e seguem fluxos estabelecidos pelo Decreto nº 9.235, de 15 de dezembro de 2017.

“Os cursos de Direito dependem de manifestação do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil para serem ofertados. Uma vez autorizados, os cursos continuam a ser monitorados periodicamente pelas autoridades educacionais, em especial com base em avaliações produzidas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira”, informou.

Segundo o MEC, caso o curso seja considerado como de desempenho insatisfatório, poderá ser celebrado um protocolo de compromisso para a superação das fragilidades detectadas e, caso haja denúncias de irregularidades e de não atendimento do protocolo de compromisso, é iniciado um processo de supervisão.

Sobre a oferta de cursos de Direito na modalidade à distância, a pasta ressaltou que instituiu iniciativas de diálogo com a sociedade civil sobre o tema.

“A Portaria MEC número 398, de 8 de março de 2023, instituiu Grupo de Trabalho para coletar subsídios para instruir a regulamentação da oferta dos cursos de direito, odontologia, enfermagem e psicologia, na modalidade de (EAD). Os encontros do GT estão na última rodada (ocorreram quatro encontros em cada área) e têm contado com a participação de representantes de outros órgãos públicos e de uma ampla gama de entidades representativas dessas formações de nível superior e de associações dos setores público e privado de ensino superior.”

Fonte: BBC