Há 46 minutos

Os astronautas Morgan e Christina fazem experimentos na Estação Espacial Internacional

Crédito, NASA

Morgan e sua colega astronauta Christina Koch conduziram esses experimentos em órbita da Terra

Ante uma escassez global de órgãos apropriados para transplante em pacientes com doenças graves, pesquisadores estão considerando a impressão 3D de tecidos vivos como solução – mas, para isso, eles poderão precisar entrar em órbita.

O médico e astronauta da Nasa (a agência espacial dos EUA)Andrew Morgan é um dos responsáveis por pesquisar essa tecnologia.

Como médico na linha de frente do Exército dos Estados Unidos, ele tratou de soldados jovens cujos corpos foram partidos e dilacerados em explosões. “Presenciei a perda de membros e lesões devastadoras como resultado das explosões”, relembra.

Acompanhar em tempo real o lento processo de cura e recuperação levou Morgan a pensar se novos tecidos ou até órgãos inteiros poderiam ser simplesmente impressos para substituir partes do corpo lesionadas. Segundo ele, “a possibilidade de transplantar tecidos feitos com as próprias células dos feridos traria enorme benefícios”.

Com essa questão em mente, Morgan realizou uma série de experimentos incomuns no ano passado, por vários meses – no espaço.

Em abril de 2020, ele retornou de uma estada de 272 dias na Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês). Enquanto estava em órbita a 400 km acima da superfície da Terra, Morgan criou tecidos vivos, célula por célula, utilizando uma impressora 3D e um material chamado biotinta.

“Não é como trocar um cartucho de impressora em casa”, afirma Morgan, sobre o equipamento utilizado. “Você coloca o cartucho, permite que a cultura se desenvolva e depois remove o recipiente com tecido para análise.”

Até aí é simples. Mas existe uma razão por que Morgan e sua colega astronauta Christina Koch conduziram esses experimentos em órbita da Terra.

“Quando você cria uma cultura de tecido com uma impressora 3D na superfície, existe a tendência de colapso da cultura na presença da gravidade”, segundo ele. “Os tecidos necessitam de uma espécie de suporte [orgânico, temporário] para manter tudo no lugar, especialmente no caso de cavidades como as câmaras do coração. Mas você não sofre esses efeitos em ambientes com microgravidade e é por isso que esses experimentos são tão importantes.”

O ambiente com microgravidade da ISS foi ideal para testar a Unidade de Biofabricação, lançada em 2019 com atualização programada para 2021. Desenvolvida pelas companhias americanas Techshot e NScrypt, ela foi projetada para imprimir células humanas, a fim de formar tecidos em forma de órgãos.

O astronauta Morgan faz experimentos e olha para a câmera sorrindo

Crédito, NASA

Experimentos conduzidos por Morgan na Estação Espacial Internacional mostram que é possível imprimir órgãos em ambientes com baixa gravidade

Inicialmente, Morgan a utilizou para testar impressões de tecidos cardíacos com espessuras crescentes, mas a equipe responsável pela tecnologia espera aprimorar o equipamento para poder imprimir órgãos humanos inteiros no espaço, que possam ser utilizados em transplantes.

A impressão de órgãos humanos parece ficção científica, mas não é. Diversas companhias de biotecnologia estão trabalhando com diferentes abordagens, que pretendem empregar as próprias células do paciente para preparar tecidos novos.

Na maioria dos casos, elas reprogramam as células seguindo um processo premiado com o Nobel, desenvolvido uma década atrás, para transformá-las em células-tronco, que são teoricamente capazes de desenvolver-se e formar qualquer parte da anatomia humana.

Com incentivo e os nutrientes corretos, elas podem ser então induzidas para tornar-se o tipo celular escolhido. E, suspendendo-se as células-tronco em hidrogel que pode ser moldado como um suporte para evitar que a estrutura em crescimento desabe sobre si mesma, o tipo de célula desejado pode ser então impresso, camada por camada, até formar o tecido vivo funcional.

“Nós já produzimos tecidos que foram transplantados com sucesso em animais, como transplantes de pele, por exemplo”, explica Itedale Redwan, o responsável científico da Cellink, a primeira companhia a comercializar a biotinta. “Recentemente, nós trabalhamos com impressão a laser para permitir a impressão no menor nível de capilaridades – as veias e artérias sanguíneas. Será essencial ser capaz de imprimir nesse nível, mas a grande questão será implantar esse tecido em seres humanos.”

Redwan estima que poderá levar 10-15 anos até que tecidos e órgãos totalmente funcionais impressos desta forma sejam transplantados em seres humanos. Os cientistas já demonstraram que é possível imprimir tecidos básicos e até miniórgãos.

Em 2018, uma equipe da Universidade de Newcastle, no Reino Unido, imprimiu a primeira córnea humana, enquanto um grupo da Universidade de Tel Aviv, em Israel, produziu um coração em miniatura com impressão de tecido humano de um paciente cardíaco. Acredita-se que esse coração poderá ser utilizado para elaborar retalhos cardíacos para reparar defeitos do coração.

Posteriormente, cientistas da Universidade do Estado de Michigan, nos Estados Unidos, deram mais um passo à frente. Eles conseguiram imprimir um minicoração humano, utilizando uma estrutura de células-tronco que imita o ambiente de desenvolvimento do feto, o que permite a criação de todos os tipos de células e estruturas complexas necessárias para um coração funcional.

Mas o coração é uma bomba relativamente simples, que consiste de uma série de câmaras rodeadas por tecido muscular. Alguns pesquisadores já desenvolveram avanços rumo à construção de estruturas de tecidos e órgãos mais complexos.

Um grupo do Instituto Wake Forest de Medicina Regenerativa em Winston-Salem, na Carolina do Norte (Estados Unidos), integrou células nervosas em músculos impressos – uma etapa fundamental para a restauração do controle e da função muscular em futuros transplantes.

Mas a construção de órgãos complexos em escala natural, como o rim e o fígado, é um desafio muito maior. Esses órgãos são misturas de muitos tipos de células, enxertados com redes de vasos sanguíneos e nervos.

Máquina de produção de tecidos vivos

Crédito, BSIP/Getty Images

Células-tronco podem ser empregadas para imprimir tecidos camada por camada, mas a produção de órgãos complexos totalmente funcionais ainda é um desafio

Jennifer Lewis, professora de Bioengenharia da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, que vem realizando experiências com a impressão de tecidos, lembra dos obstáculos que ainda precisam ser superados.

A recriação da função completa de um órgão – a sincronicidade de ação do coração, por exemplo, ou a função de filtragem do rim – não é uma tarefa fácil. Uma etapa importante será a reprodução do processo de organogênese, segundo o qual a arquitetura multicelular do tecido e dos órgãos humanos forma-se no embrião para desenvolver diferentes funções, segundo ela.

“Estamos descobrindo, por exemplo, que, muitas vezes, a função do tecido não é tão madura quando ele é criado no laboratório, em comparação com o tecido vivo”, afirma Lewis. “Isso pode ser fácil na ficção científica, mas para nós é um sonho. Mesmo assim, já é possível ver os caminhos para que isso se torne realidade nas próximas duas décadas.”

A companhia BioLife4D, que desenvolve e fabrica tecnologia de bioimpressão, concentra-se na impressão de componentes biológicos para uso no reparo de corações humanos, que é a base para a produção de corações transplantáveis totalmente impressos. Ela acredita que exista um mercado multimilionário para os diversos componentes, como válvulas cardíacas, que poderão ser impressos no futuro.

“Mas, no caso de órgãos como o fígado, você só terá algo (relevante) quando imprimir o fígado inteiro”, segundo o executivo-chefe da empresa, Steve Morris. “Do ponto de vista de pesquisa científica, com bioengenharia você poderá também elaborar um coração com um defeito específico, para permitir o teste de um tratamento.”

Itedale Redwan, da Cellink, salienta que, a curto prazo, órgãos impressos possibilitarão a modelagem mais eficiente de doenças no laboratório e auxiliarão no desenvolvimento de medicamentos. Isso, por sua vez, deverá ajudar a reduzir a frequência de testes em animais.

A médio prazo, quando puderem ser impressos órgãos em escala natural, atender à demanda pode ser um desafio. Atualmente, existe uma enorme escassez de doadores de órgãos para atender às pessoas que necessitam de transplante.

“Há, por exemplo, cerca de um milhão de pessoas em todo o mundo aguardando um transplante de rim”, segundo Jennifer Lewis. A Organização Mundial da Saúde estima que sejam realizados cerca de 130 mil transplantes de órgãos todos os anos, o que atende apenas a 10% da necessidade. Somente nos Estados Unidos, existem 107 mil pacientes em listas de espera de transplantes.

“Poder oferecer órgãos para essas pessoas já traria um impacto enorme”, afirma Lewis.

Os beneficiados com o recebimento de transplante de um doador também precisam passar o resto das suas vidas tomando drogas imunossupressoras para impedir que os seus corpos rejeitem esses órgãos “externos”. Mas, se um órgão novo puder ser impresso utilizando suas próprias células, o risco de rejeição deverá ser muito reduzido.

Considerando a necessidade e os potenciais benefícios, o longo caminho necessário para cultivar órgãos no espaço parece compensador. Mas o custo da impressão no espaço é alto.

Máquina de produção de tecidos vivos

Crédito, Yuri Kadobnov/Getty Images

Uma técnica sendo testada é a levitação dos tecidos em campo magnético durante o seu crescimento

A Unidade de Biofabricação a bordo da ISS custa US$ 7 milhões (cerca de R$ 40 milhões) e ainda há o custo de colocação das células e outras matérias-primas em órbita antes de trazer os órgãos impressos de volta com segurança. E a produção em larga escala também será difícil.

Esses custos incentivaram a pesquisa para descobrir se o ambiente com baixa gravidade encontrado em órbita pode ser reproduzido aqui na Terra para a produção de órgãos complexos e delicados. A companhia médica russa 3D Bioprinting Solutions, por exemplo, produziu um sistema que utiliza um campo magnético para a levitação dos tecidos à medida que eles formam a estrutura desejada.

Os cientistas também precisam descobrir como fazer com que a vasculatura e as terminações nervosas do órgão impresso sejam funcionais. Mas, enquanto isso, espera-se que a Unidade de Biofabricação possa ser capaz de receber encomendas de clientes industriais e institucionais em busca de explorar o seu potencial de impressão de tecidos.

Alguns especialistas, como Gene Boland, cientista-chefe da Techshot, imaginam que, em algum momento – talvez na década de 2030 ou 2040 -, aparelhos de bioimpressão sejam instalados na órbita baixa da Terra, utilizando o ambiente de microgravidade para imprimir tecidos humanos cada vez mais complexos até, quem sabe, atingir especificações cada vez mais avançadas.

E, para muitos que tentam desenvolver essa revolução na tecnologia de transplantes, a busca é profundamente pessoal.

“Minha filha nasceu com apenas um pulmão”, conta Ken Church, executivo-chefe da NScrypt, a companhia que ajudou a desenvolver a bioimpressora utilizada por Andrew Morgan na ISS. “Ela tem 27 anos de idade e está bem agora, mas ainda tem só um pulmão. Isso me fez pesquisar a engenharia de tecidos – quando a bioimpressão ainda não existia – e fiquei fascinado com essa ideia.”

A NScrypt agora está desenvolvendo a próxima geração de bioimpressoras – um biorreator que, em vez de utilizar o ambiente com baixa gravidade para evitar a necrose no centro dos tecidos impressos, emprega outras técnicas, como centrifugação, agitação ou infusão com oxigênio, à medida que o tecido cresce.

“Se eu puder criar um pulmão para minha filha enquanto ela viver, ficarei muito feliz”, afirma Church.

Mas, embora seja fácil contagiar-se com o entusiasmo com impressão de órgãos específicos, existem também outras implicações maiores que precisam ser estudadas. A possibilidade de imprimir órgãos humanos pode, afinal, ter profundo impacto na sociedade, que vai além do consequente aumento da longevidade média das pessoas.

As doenças cardiovasculares são a principal causa de morte da maioria das pessoas no Ocidente – estima-se que uma em cada três mortes seja causada por elas – e a substituição do coração por outro, mais jovem e saudável, terá o potencial de aumentar em décadas a vida das pessoas. Mas, aparentemente, nem todos estão satisfeitos com essa ideia.

“Temos recebido reclamações e houve um e-mail nos chamando de ‘demônios encarnados'”, conta Morris, da BioLife4D. “Eles argumentam que não seria correto imprimir órgãos para estender a vida das pessoas, devido à escassez de recursos que já causa muito sofrimento – e estender a vida somente aumentaria esse sofrimento.”

Existem outras questões éticas que também precisarão ser enfrentadas.

“E se um pai pedir que o coração do seu filho com 12 anos de idade seja substituído por outro maior, para que bombeie o sangue com mais força e eficiência e ele se torne o astro dos esportes na escola?”, sugere Morris. “Se pudermos imprimir um coração com duas válvulas, por que não imprimir um com mais duas válvulas embutidas?”

“Pessoalmente, aqui tenho dúvidas – se a evolução não nos deu um coração com válvulas a mais, provavelmente é porque elas não devem estar ali. Mas, se você precisasse substituir um órgão por outro motivo, eu não teria objeções em substituí-lo por um que fosse melhorado dessa forma”, afirma ele.

Considerando o alto custo da impressão de órgãos – particularmente se ela ocorrer em órbita da Terra -, o fornecimento de corações ou pulmões aprimorados de alguma forma poderia ser uma forma de atrair pessoas dispostas a pagar por essas técnicas.

“Esta será uma questão muito polêmica”, segundo Ravi Birla, engenheiro de tecidos da BioLife4D. “Se você mudar tudo em uma pessoa, órgão por órgão, poderemos argumentar que o que sobrou não é o ser humano que nasceu, mas sim outra criatura.”

Ele afirma que, embora a questão no momento seja o uso de órgãos em cirurgias para salvar vidas, inevitavelmente surgirão comparações com as cirurgias cosméticas.

“A questão agora é como traçar a fronteira entre as duas”, afirma Birla. “É fácil ver como alguém poderá considerar a opção por órgãos aprimorados como semelhante ao uso de drogas que melhoram o desempenho nos esportes. A maioria das pessoas pode ser contrária, mas as drogas continuam sendo comercializadas e consumidas.”

Mas talvez os usos mais surpreendentes da impressão de órgãos não estejam aqui na Terra, afinal. À medida que os seres humanos começarem a se aventurar cada vez mais no espaço, primeiramente retornando à Lua e, depois, em direção a Marte, a bioimpressão poderá ser uma ferramenta essencial de manutenção da vida. A milhões de quilômetros da Terra, serão poucos os doadores de órgãos, mas haverá também falta de algo mais: comida.

“Essa é a ponta do iceberg de possibilidades da impressão de órgãos”, segundo Gene Boland, da Techshot. A empresa financiou parte da instalação da bioimpressora na ISS e supervisionou alguns dos experimentos de operação remota, assistidos pelo astronauta Andrew Morgan. Ela assinou recentemente um contrato com a companhia aeroespacial Axiom Space, para instalar a primeira bioimpressora comercial na ISS.

“Um dia, a bioimpressão será importante também para a exploração espacial – para a impressão de células animais para alimentos ou de tecidos para o caso de emergências médicas. Enquanto isso, esses experimentos na ISS vão desvendar alguns dos segredos da bioimpressão para que ela funcione primeiramente aqui na Terra. Este é o grande salto do momento”, conclui Boland.

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Fonte: BBC