• Mariana Alvim
  • Da BBC News Brasil em São Paulo

Há 23 minutos

Médico de jaleco e máscara com a cabeça encostada na parede, demonstrando preocupação

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Segundo entrevistados, denúncias de sobrecarga e formação insatisfatória por residentes da Unicamp não é caso isolado, se repetindo em outras residências em medicina do país

A médica Kátia Paulino, 28 anos, sabe bem o que é uma decisão drástica como a de médicos residentes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que anunciaram através de uma carta aberta, no início de maio, a demissão coletiva do programa de residência em ortopedia e traumatologia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), por denunciarem sobrecarga de trabalho e condições inadequadas de aprendizagem.

Paulino, que começou uma residência em ginecologia e obstetrícia em um hospital público na cidade de São Paulo (que ela pediu para não ser identificado) no início de 2020, largou o programa quatro meses depois por motivos semelhantes aos relatados pelos residentes da Unicamp, segundo contou à BBC News Brasil por telefone.

“Foram muitos os momentos que eu percebi que não deveria estar ali. Quando você percebe que não é aquela médica que falou que seria na qualidade, no tempo de atendimento”, relata Paulino, que se formou em medicina em 2018.

“Como a gente pode pensar que uma pessoa adoecida vai poder cuidar de outra pessoa? Ainda mais em uma residência de ginecologia e obstetrícia, em que a paciente está recebendo um filho.”

A médica parabenizou a manifestação dos residentes da Unicamp, afirmando que eles “colocaram uma lupa em uma situação” que já deveria ter sido revelada “muito antes”.

“Espero que não seja algo passageiro, que seja algo para mudar a residência médica no Brasil.”

A residência médica é uma pós-graduação que forma médicos especialistas, como clínicos e pediatras — que são, de acordo com o estudo “Demografia Médica no Brasil 2020”, as especialidades com maior número de residentes no país. Oferecidas por instituições de saúde como hospitais, as residências devem oferecer formação teórica e prática, onde os residentes atendem pacientes sob supervisão de médicos mais experientes. O ingresso costuma ser por meio de processo seletivo — alguns altamente concorridos —, e a duração varia de dois a cinco anos.

Mãos de médica juntas às de paciente

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‘Foram muitos os momentos que eu percebi que não deveria estar ali. Quando você percebe que não é aquela médica que falou que seria na qualidade, no tempo de atendimento’, conta a médica Kátia Paulino, que conta ter desistido da residência

Segundo a assessoria de imprensa da Unicamp, o desligamento dos médicos do primeiro ano de residência em ortopedia e traumatologia acabou não ocorrendo, após reuniões e acordos entre a faculdade e os residentes. A universidade relata ter recebido a carta em 11 de maio.

“Conjuntamente, o Departamento de Ortopedia e Traumatologia e a Comissão de Residência Médica da FCM, juntamente com a Superintendência do Hospital de Clínicas, estão adotando medidas para atenuar os problemas colocados, destacando posição madura e sensata dos residentes”, escreveu a assessoria em nota.

A reportagem tentou contato com os residentes autores da carta e com a Associação de Pós-Graduandas e Graduandos da Unicamp, mas não recebeu resposta.

No texto, os residentes afirmaram: “As condições de trabalho as quais estamos sendo submetidos e a carga horária semanal associada ao número de plantões e a quantidade reduzida de residentes tornou nosso trabalho humanamente impossível de ser realizado.”

“O foco da universidade que se baseia no tripé ensino, pesquisa e extensão não condiz com a realidade a qual estamos expostos e não será possível de ser realizado na quantidade atual de residentes.”

Ainda que, segundo a universidade, a demissão coletiva não tenha ido à frente, nas redes sociais, dezenas de médicos apoiaram a manifestação dos residentes da Unicamp. Dias depois, circulou a imagem de outra denúncia, que teria sido recebida pela Coordenação-Geral de Residências em Saúde (CGRS), do Ministério da Educação (MEC), sobre a residência em cirurgia geral e ortopedia no Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual (IAMSPE) em São Paulo (SP).

No texto, o autor da denúncia afirma que residentes chegam a dar mais de 40h seguidas de plantão, chegando à exaustão; e que a carga horária da residência ultrapassa em muito as 60h semanais estabelecidas por lei, chegando às vezes a 110h, segundo o texto. De acordo com a lei da residência médica, dentro do limite das 60h semanais, só é permitido um máximo de 24h de plantão.

“Tal rotina tem colocado a saúde de médicos em risco, assim como a dos pacientes que poderão ter um mau atendimento. Só queremos que se cumpra a lei e que prevaleça o que está escrito no edital da contratação”, diz a denúncia sobre a residência do IAMSPE.

Em nota, a assessoria de imprensa do instituto afirmou que “recebeu denúncia anônima de sobrecarga de trabalho no programa de residência médica e está apurando para que, caso haja irregularidades sejam tomadas as devidas providências”. Entretanto, o instituto acrescentou que em reunião recente com diretores do hospital, “os residentes não apresentaram nenhuma queixa”.

Kátia Paulino, que conta ter abandonado a especialização em um hospital da capital paulista, lembra que em uma semana típica da residência, a demanda passava de 80h semanais. Como em muitas residências, ela diz que não havia qualquer tipo de controle de horas. Segundo decisões recentes da Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), cabe a cada instituição definir a “modalidade de verificação/comprovação do cumprimento da carga horária”, como folha de ponto, ponto eletrônico ou biometria.

Uma resolução da CNRM também determinou que, após plantões noturnos de no mínimo 12h, é obrigatório que os residentes tenham descanso imediato, pós-plantão, com duração de de 6h.

Paulino diz que se planejou financeiramente para se dedicar exclusivamente à residência durante o período de formação, mas é comum que médicos residentes trabalhem, além das 60h, em outros serviços — como em plantões em ambulâncias e prontos-socorros, o que aprofunda o cansaço.

“Me planejei para ficar só com o salário da residência, pra não precisar plantão. Mas sei que não é a realidade da grande maioria das pessoas”, diz a médica.

Desde janeiro deste ano, o valor mínimo da bolsa para médicos residentes é de R$ 4,1 mil mensais. De acordo com o estudo “Demografia Médica no Brasil 2020”, a principal fonte de bolsas no país é o Ministério da Saúde, enquanto o Ministério da Educação financia bolsas especificamente em hospitais universitários federais. Há também bolsas pagas por governos estaduais, prefeituras, hospitais filantrópicos e privados.

Presidente da Associação Nacional dos Médicos Residentes (ANMR), Maikon Madeira, atualmente residente em cirurgia cardíaca, avalia ser desejável a melhora no controle da carga horária dos programas de residência pelo país. Ainda segundo ele, algumas residências permitem e outras proíbem que os médicos em formação trabalhem fora — além das 60h semanais da residência.

“Quem consegue se manter com salário de residência numa cidade grande?”, questiona Madeira, justificando a busca de residentes por trabalhos externos.

Denúncias de assédio moral e até físico

Embora reclame da sobrecarga pela qual passou na residência, Kátia Paulino diz que este não foi a única razão para o abandono.

“O motivo que eu quis sair de lá não foi só pela carga horária, assim como eu acredito que na Unicamp, não foi só pela carga horária. Foi o assédio moral, também, por parte de todos — do sistema, da chefia, da equipe, da instituição. Justamente por normalizarem a situação do residente exausto”, denuncia a médica, que iniciou e abandonou a residência no primeiro ano da pandemia de coronavírus, 2020.

O hospital do qual ela era residente passou a ter uma maior demanda na maternidade, já que outros hospitais estavam muito voltados à covid-19. Mas a médica acredita que, mesmo subtraindo o contexto de pandemia, sua residência teria sido problemática.

“Ficamos só em regime de plantão de obstetrícia, então não tinha outras atividades de ginecologia”, lembra.

“Acho que a pandemia veio para colocar uma lupa nessa situação, mas não acredito que seria muito diferente não.”

De acordo com Paulino, do seu grupo de oito amigos que entraram para a residência, apenas dois concluíram a formação.

“Com certeza eu tive um episódio depressivo importante, tive que tratar com medicação, terapia… Se os todos residentes passassem por uma avaliação psiquiátrica, metade ia sair com algum CID (Classificação Internacional de Doenças).”

Instrutor escreve em quadro branco, observado por dois alunos sentados diante de mesa, em ambiente de laboratório

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A residência médica pressupõe não só a prática, mas também a formação teórica

Ao dar entrevista, a médica disse que provavelmente a reportagem teria dificuldade em conversar com outros residentes, pois haveria um medo disseminado em fazer críticas e denúncias. De fato, a BBC News Brasil tentou contato com dez médicos encontrados por meio de indicações ou de comentários nas redes sociais, mas nenhum concedeu entrevista — alguns simplesmente não responderam à reportagem, outros afirmaram que não tinham críticas relevantes a compartilhar.

Entretanto, documentos encontrados no site do Ministério da Educação com as pautas de reuniões da Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) deste ano revelam que denúncias contra programas de residência médica são frequentes. A comissão é formada por membros de diversas entidades, como a própria Associação Nacional dos Médicos Residentes (ANMR), além do Conselho Federal de Medicina (CFM), do Ministério da Saúde, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), entre outras.

Eventuais denúncias devem ser endereçadas primeiro para a Comissão de Residência Médica (Coreme) de cada hospital; depois, para as Comissões Estaduais de Residência Médica (Cerem); e em seguida, para a CNRM. Esta supervisiona as residências médicas no país, mas segundo Madeira, a comissão enfrenta o desafio de fiscalizar um país extenso como o Brasil.

Na pauta da reunião da CNRM de 27 e 28 de abril, estavam 17 denúncias. Nem todas procediam, na avaliação da comissão, como uma denúncia sobre a residência de uma instituição do Paraná que teve recomendação para arquivamento “devido à inconsistência dos fatos apresentados na mesma, todos contestados e documentados pela Coreme”. Já em outro caso, a comissão exigiu que um programa de residência do Mato Grosso do Sul comprovasse que os residentes receberiam treinamento para uma série de exames de patologia.

No registro de uma reunião de janeiro, que teve 26 denúncias na pauta, consta que a câmara técnica da comissão exigiu que uma instituição de São Paulo apresentasse os resultados de um processo administrativo sobre uma denúncia de coação física que dois preceptores (instrutores) de residentes exerceram sobre um residente em anestesiologia.

Em uma reunião de março, a comissão exigiu que um hospital de Minas Gerais entregasse um “documento assinado pelos médicos residentes afirmando que não realizam plantão de sobreaviso, que possuem descanso pós-plantão, que a carga horária semanal é de 60 horas e que as atividades teóricas estão ocorrendo de forma regular”. Na pauta desta reunião, havia 10 denúncias a serem avaliadas.

A BBC News Brasil pediu o posicionamento e mais dados da CNRM, por meio da assessoria de imprensa do MEC, no dia 18 de maio, mas não recebeu resposta.

Conflitos geracionais

Nas redes sociais, além de comentários apoiando manifestações recentes sobre problemas das residências em medicina, há outros classificando tais protestos como frescura, como se fossem expressão de médicos jovens que não sabem ser resilientes diante dos desafios da prática médica.

Médico e coordenador-geral da residência médica do Hospital de Clínicas de Itajubá, em Minas Gerais, Seleno Glauber afirma que diferenças geracionais são hoje fonte de muitos conflitos nas residências.

“O perfil de residente mudou nos últimos 10 a 15 anos. Antes havia uma resiliência maior às condições adversas, pressões e até assédios por parte dos superiores. É comum histórias de cirurgiões que jogavam pinças cirúrgicas nos residentes que faziam algo de errado. Isso mudou. Hoje eles sabem seus direitos e brigam por isso”, explica Glauber, especialista em cirurgia geral, cirurgia vascular e endovascular e radiologia intervencionista.

“Esses conflitos geracionais são comuns e desgastantes. O que sempre falo para os supervisores de programa de residência é que é preciso apenas seguir a lei e as resoluções da Comissão Nacional de Residência Médica, evitando dor de cabeça e desgastes.”

O coordenador da residência afirma que, mesmo que haja um limite em lei de 60h semanais na carga horária, os serviços de saúde, supervisores e preceptores não conseguiram se ajustar a isso. Contribui — negativamente — para este quadro as dificuldades financeiras de hospitais públicos e filantrópicos para contratar especialistas, cujo trabalho acaba sendo conduzido na prática por residentes; e a grande demanda por atendimento nessas instituições, o que em alguns casos acaba impedindo que os residentes tenham acesso à formação teórica.

Médica de máscara e jaleco olha para a câmera; no plano de fundo, estão outras duas profissionais da saúde

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‘Conflitos geracionais são comuns e desgastantes’, diz Seleno Glauber, médico e coordenador da residência em um hospital de Minas Gerais

Há ainda situações em que residentes desistem da formação, e os residentes que permanecem acabam precisando assumir todo o trabalho.

“Ocorre que muitas vezes o serviço da especialidade é estruturado para funcionar dependendo do residente, coisa que sempre ocorreu ao longo de décadas”, diz Glauber. “Entendemos que a extrapolação de carga horária é muitas vezes requerida até pelos próprios residentes como forma de complementar seu treinamento em serviço. Essa extrapolação acaba sendo aceitável pontualmente principalmente se for compensada posteriormente.”

“Entretanto, o ponto crucial é o retorno que o residente tem. Se ele for apenas requerido para cumprir a assistência, mas sem ganho de aprendizado, ou mesmo ausência de preceptor que o oriente adequadamente em determinado estágio, essa situação piora.”

“Nós mesmos já tivemos denúncias devido extrapolação de carga horária, e isso de deveu durante a pandemia, quando os serviços foram congestionados e havia escassez de residentes, médicos especialistas e todo o tipo de profissional de saúde para atender à demanda. Infelizmente foi uma situação de difícil correção em meio ao caos. Hoje conseguimos equalizar a situação.”

Presidente da ANMR e residente, Maikon Madeira diz ter seus direitos respeitados em sua especialização em um hospital filantrópico de Santa Catarina que atende ao Sistema Único de Saúde (SUS), mas inevitavelmente sente o impacto de estar trabalhando em um serviço público.

“Hoje eu me sinto sobrecarregado pelo sistema público, pela demanda pós-pandemia. O SUS é lotado, às vezes a gente não tem como se separar disso.”

Segundo Madeira, hoje, a principal bandeira da associação é pelo cumprimento da lei para que os residentes recebam alimentação e moradia de seus programas. Embora a ANMR receba relatos sobre sobrecarga e assédio moral, entre outros problemas, o presidente da entidade diz que a principal demanda que chega para a entidade é para auxílio dos residentes em processos de transferência.

De acordo com o estudo “Demografia Médica no Brasil 2020”, em 2019, 53.776 médicos cursavam a residência médica no país em 55 especialidades. A maior parte dos residentes (58,4%) tinha entre 25 e 29 anos, e 30%, de 30 a 34 anos.

O Sudeste concentrava 57,3% dos médicos residentes, e o Norte, o menor percentual deles (3,7%). Mesmo no indicador relativo à população, de médicos por 100 mil habitantes, o Sudeste lidera. São Paulo é o Estado com o maior número de residentes no país, 33,9% do total.

Outro indicador importante, o que mostra o equilíbrio entre formados em medicina e as vagas em residências, tem mostrado melhora nos últimos anos, sobretudo entre 2013 e 2017. Ou seja, a defasagem entre egressos de escolas médicas e residentes ingressantes tem diminuído. Se mantida esta tendência, esta defasagem poderia ser extinta no ano de 2025, segundo o estudo.

Sem adoecer

A médica Kátia Paulino faz parte de um grupo sobre o qual ainda carecem dados, o dos residentes que desistem desta formação. Hoje, a médica que um dia idealizou fazer a residência em ginecologia e obstetrícia passou a valorizar mais a saúde mental, tanto para os pacientes quanto para si — pessoal e profissionalmente. Ela trabalha atualmente em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Álcool e Drogas.

“Hoje eu entendi por que eu saí da residência. Eu amo o que eu faço, eu me reencontrei na medicina. Trabalhar com saúde mental dá uma nova perspectiva e ressignifica o entendimento de por que a gente é médico”, conta Paulino.

“Acho que a residência é muito importante, mas o modo como é feito, que é como era há 50 anos, não se sustenta mais. A ideia de atendimento humanizado é muito importante hoje. Como uma pessoa adoecida vai cuidar de alguém de uma forma humanizada? Quem é chefe hoje, que fez residência há 50 anos, não tem essa ideia de humanização — e hoje isso é algo cobrado, com razão.”

A médica diz que continua estudando e participando de cursos, independente da residência. Mas, no final do ano, ela pretende voltar a procurar processos seletivos para se tornar de novo residente — desta vez, priorizando um programa que tenha uma cultura mais humanizada.

“Quero fazer uma residência que não me adoeça, mais do que qualquer especialidade”, conta a médica.

– Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-61654909

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Fonte: BBC