• Julia Braun
  • Da BBC News Brasil em São Paulo

Há 8 horas

Pelé em 2019 na França

Crédito, Getty Images

Pelé em 2019 na França

A política sempre foi motivo para controvérsia na carreira do Rei do Futebol. Criticado por alguns por ter feito pouco para enfrentar o regime militar ou denunciar o racismo, Pelé se esquivou em diversos momentos de se aprofundar no tema.

“Em lugares que eu passo ou chego, em aeroporto, restaurante, quando a gente vai almoçar, é uma coisa engraçada, porque os caras misturam as coisas, vêm me cobrando. Vem cá, eu era jogador de futebol, gostava de jogar, gostava muito, mas eu não sou político, eu sou brasileiro”, disse em um documentário da Netflix lançado em 2021.

Ainda assim, o ex-jogador que morreu nesta quinta-feira (29/12), aos 82 anos, participou de momentos marcantes da história recente do Brasil e chegou, inclusive, a se declarar socialista e a flertar com a possibilidade de se candidatar à Presidência.

Ditadura militar

Em 1970, o país viveu um dos episódios mais famosos da relação entre futebol e política — e Edson Arantes do Nascimento, estrela do futebol nacional, foi consequentemente um dos protagonistas desse momento.

Na ocasião, o Brasil estava no auge do regime militar, sob a presidência de Emílio Garrastazu Médici (1905-1985), e a seleção brasileira havia se consagrado tricampeão na Copa do Mundo daquele ano, no México.

O supertime de 1970, de jogadores como Pelé, Tostão e Rivelino, é até hoje lembrado como uma das maiores seleções (ou a maior, segundo muitas votações) de todos os tempos. Mas a equipe também foi acusada de “presentear” a ditadura com a taça do mundial.

Durante o campeonato, a seleção brasileira e a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) sofreram forte ingerência do governo militar.

O regime militar via na seleção uma oportunidade para elevar o espírito ufanista nacional e unificar o país com a Copa, que seria a primeira com transmissão ao vivo pela televisão.

Antes do torneio, o técnico João Saldanha (1917-1990), assumidamente comunista e crítico do regime, foi demitido e substituído por declarações polêmicas. Além disso, militares foram escalados como preparadores físicos e o próprio chefe da delegação era o brigadeiro Jerônimo Bastos.

Presidente Médici, ao centro com a taça da Copa do Mundo, recebeu todos os jogadores tricampeões no Palácio do Planalto

Crédito, Getty Images

Presidente Médici, ao centro com a taça da Copa do Mundo, recebeu todos os jogadores tricampeões no Palácio do Planalto

Após a vitória, a seleção foi recebida por Médici, que tirou fotos com a taça na mão e ofereceu um almoço para os jogadores no Palácio da Alvorada. Após o encontro, cada membro da delegação ainda ganhou de presente do governo um prêmio depositado em caderneta de poupança.

Pelé, que havia jogado a quarta Copa de sua carreira, foi um dos fotografados ao lado do ditador.

Por esse e outros gestos, foi fortemente criticado ao longo dos anos, acusado de falta de posicionamento político e submissão frente à ditadura.

A postura de Pelé sobre o regime, porém, variou ao longo dos anos. No documentário Pelé, lançado em 2021 pelo Netflix, o ex-jogador falou sobre o episódio.

“Eu acho que não teve condições. Não deu para fazer outra coisa. Porque… o que que adiantou a ditadura? Para que lado você tá hoje? A gente fica meio perdido. Eu sou um cidadão brasileiro. Eu quero o melhor pro meu povo”, disse.

O jogador aposentou a camisa da seleção em 1971, mas foi convidado para voltar a defender o time na Copa de 74. Pelé recusou o convite, apesar da insistência de membros do governo — segundo reportagem do jornal O Estado de S. Paulo de 1972, o próprio presidente Médici teria pedido seu retorno em uma audiência no Planalto.

Preparo físico da seleção de 1970, feito sob comando de militares

Crédito, Getty Images

Preparo físico da seleção de 1970 foi feito sob comando de militares

Em uma entrevista ao portal UOL em 2013, o Rei do Futebol afirmou que rejeitou os pedidos porque a ditadura estava prejudicando demais o povo.

“Por um único motivo não aceitei: estava infeliz com a situação da ditadura no país. Estava preocupado com o momento. Em apoio ao país, eu recusei, pois estava muito bem e poderia jogar em alto nível”, afirmou Pelé.

Já em 1984, no auge da campanha pela volta das eleições diretas para presidente, o ex-jogador apareceu na TV com uma réplica da Taça Jules Rimet, a primeira taça da Copa, declarando apoio às Diretas Já.

Pelé ainda foi fotografado pelo fotógrafo Ronaldo Kotscho com uma camiseta apoiando o movimento. “O governo atual já teve a oportunidade dele. A pressão é muito grande e acho que todo mundo deve ter essa oportunidade [de votar]”, disse em entrevista à revista Placar na ocasião.

Pelé na Presidência?

Há registros ainda de que o Rei do Futebol tenha cogitado concorrer ao cargo de presidente.

Em novembro de 1989, às vésperas da eleição presidencial que levou Fernando Collor de Mello ao Planalto, o jornal Folha de S.Paulo publicou que Pelé ambicionava sair candidato em 1994.

“Ele afirmou que se considera um socialista e que pretende criar um partido próprio, caso se decida pela vida política”, diz a reportagem.

Pelé em 1990 na Itália

Crédito, Getty Images

Pelé em 1990 na Itália

“Se eu for candidato, vou procurar fazer um plano com antecedência e participar dos debates na TV”, teria dito o ex-jogador.

Segundo a Folha, as declarações foram dadas em uma coletiva de imprensa em São Paulo em 7 de novembro de 1989, marcada para apresentar uma nova empresa chamada “O Rei”.

Na mesma ocasião, ele teria negado apoio a Collor como candidato, mas não revelou em quem iria votar.

E essa não foi a única vez em que o craque abordou a possibilidade de se lançar candidato. Em imagens divulgadas pelo Globo Esporte, da TV Globo, o ex-jogador comentou sobre um outro momento em que cogitou entrar para a política.

Segundo Pelé, conversas sobre o assunto surgiram durante o período da ditadura, mas ele descartou a possibilidade naquele momento porque tinha um contrato a cumprir com a Warner Communications, que na época comandava o time New York Cosmos, e não havia eleições diretas para presidente.

“Daria tempo para eu me preparar por oito anos, estudar, entrar em um curso ou nos Estados Unidos ou aqui mesmo. E aí eu talvez até pensasse nisso”, diz ele nas imagens divulgadas pela TV Globo.

“Porque se acontecer naturalmente como tudo aconteceu na minha vida, eu não vou fugir da responsabilidade.”

“Se pintar, eu vou ser presidente da República mesmo.”

Ministro do Esporte

A candidatura nunca veio, mas Pelé realmente entrou na política: participou no governo de Fernando Henrique Cardoso como ministro dos Esportes.

O Rei do Futebol comandou a pasta entre os anos de 1995 e 1998 e um dos principais focos da sua gestão foi modernizar o futebol e assegurar direitos trabalhistas para os atletas profissionais.

Pelé e FHC em Brasília em 1995

Crédito, Getty Images

Pelé e FHC em Brasília em 1995

Pelé conseguiu ter uma lei sancionada pelo governo, a Lei Pelé, em 25 de março de 1998. A medida aboliu o chamado passe — um conceito jurídico que descreve o vínculo que liga o atleta ao clube e condiciona a transferência de um jogador de um clube para outro ao pagamento de uma soma em dinheiro — e forçou a profissionalização dos departamentos de futebol dos clubes, que passaram a pagar imposto de renda.

Para muitos, a decisão deu aos jogadores a liberdade para trocar de times e de buscar contratos mais favoráveis financeiramente, além da possibilidade de atuar em outros países com mais facilidade.

Os mais críticos, porém, dizem que a medida prejudicou os clubes pequenos, uma vez que fez com que perdessem uma importante fonte de renda, e favoreceu a exportação de atletas do Brasil para países da Europa. Está em discussão no Congresso atualmente um projeto de lei que busca alterar a Lei Pelé e restituir a figura do passe, mas que enfrenta alguma resistência dos jogadores.

Quando a passagem do jogador pelo Ministério do Esporte acabou, a pasta foi extinta, com alguns setores à época sendo agregados ao Ministério da Educação (MEC).

Fonte: BBC