• Juliana Sayuri
  • De Hiroshima (Japão) para a BBC News Brasil

Há 4 horas

Manifestante em Toquio no dia 5 de marco de 2022

Crédito, Getty Images

Em Tóquio e em outras partes do Japão, manifestantes protestaram contra Putin e o possível uso de armas nucleares

Todos os dias, às 8h15 da manhã em ponto, um relógio toca no alto de uma torre de aço no Parque Memorial da Paz de Hiroshima, no Japão. O som é um lembrete da hora exata em que caiu na cidade a “Little Boy”, a primeira bomba atômica da história, lançada pelos Estados Unidos no dia 6 de agosto de 1945, no fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Hiroshima foi devastada pela bomba e estima-se que cerca de 40% de seus 350 mil habitantes morreram, muitos incinerados instantaneamente. Hoje, a cidade preserva diversos marcos de memória do bombardeio, como a emblemática cúpula do único edifício no entorno que resistiu à explosão nuclear.

Foi na frente dessas ruínas que ativistas antinucleares, pacifistas e sobreviventes da bomba atômica se reuniram para protestar contra a guerra na Ucrânia nos últimos dias.

Na noite de 8 de março, cerca de 100 manifestantes fizeram uma vigília, organizada pela ONG Aliança de Hiroshima para a Abolição das Armas Nucleares, acenderam 1,3 mil velas e as dispuseram no chão para compor as palavras “não à guerra”, “não às armas nucleares”, em inglês e em russo. “No war, no nukes, het boñhe”, dizia no megafone um dos participantes.

Atos simbólicos

Dias antes, o memorial às margens do Rio Motoyasu também foi ponto de encontro para um pequeno protesto de europeus radicados no Japão, entre eles ucranianos e bielorrussos. Desde a invasão russa à Ucrânia, iniciada no dia 24 de fevereiro, manifestações contra a guerra vêm ocorrendo em cidades como Hiroshima e Nagasaki, além de metrópoles como Tóquio, Quioto e Nagoya. Não foram marchas gigantescas como as vistas na Europa e nos Estados Unidos, mas atos simbólicos.

Em Nagasaki, que foi o alvo da segunda bomba atômica norte-americana, cerca de 40 ativistas se reuniram no Parque da Paz e fizeram minutos de silêncio a partir das 11:02, a hora exata da explosão de 9 de agosto de 1945, que destruiu a cidade e provocou mais de 70 mil mortes.

Neto de “hibakusha”, como são referidos os sobreviventes das bombas atômicas em japonês, o ativista Mitsuhiro Hayashida leu uma carta no ato de protesto, reportou a emissora pública NHK. “O que aconteceu em Hiroshima e Nagasaki não deve se repetir”, declarou Hayashida. “Hiroshima e Nagasaki nunca mais” é uma mensagem comum para se referir aos riscos de tragédia da fissão nuclear.

Em Hiroshima, as marcas continuam na cidade. Apesar das restrições ainda em vigor por conta da pandemia de covid-19, que fizeram o Museu Memorial da Paz de Hiroshima fechar as portas temporariamente, visitantes ainda passam pelo memorial, um parque a céu aberto que pretende simbolizar o drama humano de uma guerra.

A Cúpula da Bomba Atômica é a ruína do edifício que resistiu à bomba atômica de 1945, hoje marco no Memorial da Paz de Hiroshima

Crédito, Juliana Sayuri

A Cúpula da Bomba Atômica é a ruína do edifício que resistiu à bomba atômica de 1945, hoje marco no Memorial da Paz de Hiroshima

Lições da história

No dia 27 fevereiro, a Rússia emitiu ordem posicionando suas forças nucleares em estado de “alerta especial”, considerado o nível mais elevado. A invasão à Ucrânia, onde a usina nuclear de Chernobyl foi ocupada e a de Zaporizhzhia foi incendiada, elevou temores de risco nuclear no leste europeu, o que repercutiu fortemente no leste asiático.

Isso porque o Japão já viveu as duas tragédias que o mundo teme atualmente: foi alvo de bombas atômicas lançadas pelos Estados Unidos, em 1945, e palco de um assombroso acidente nuclear na usina de Fukushima, provocado por um megaterremoto e um tsunami em 2011 – considerado o mais grave acidente nuclear desde a explosão de um reator nas instalações de Chernobyl, em 1986, na à época União Soviética, atual Ucrânia.

Cerca de 50 instituições acadêmicas japonesas publicaram notas em diversos idiomas criticando a invasão à Ucrânia, uma mobilização inédita, principalmente tratando-se de um conflito no exterior. Entre as instituições estão as universidades de Fukushima, no norte do arquipélago, e as de Hiroshima e Nagasaki, no sul.

No campus de Nagasaki, onde há um curso de medicina famoso por lidar com os impactos da radiação, além de um longo intercâmbio com centros ucranianos na área de assistência a vítimas de Chernobyl, o presidente Shigeru Kohno assinou uma nota forte, definindo as ameaças do governo russo como “inaceitáveis”. “Nós instamos fortemente a Rússia a interromper a agressão armada o mais rápido possível e alcançar uma saída pacífica através da diplomacia”, publicou Kohno.

Considera-se improvável que a Rússia realmente use armas nucleares na Ucrânia. Mas o fato de já ter acontecido antes, no Japão, contribui para que persista o temor de que isso volte a acontecer sem sequer se definir um “porquê”. Até os dias atuais, por exemplo, não há consenso entre historiadores sobre a “necessidade” ou a “inevitabilidade” do lançamento de bombas atômicas pelos Estados Unidos para pôr fim à Segunda Guerra Mundial – um conflito em que o Japão estava junto à Alemanha nazista e à Itália fascista; e os Estados Unidos eram aliados de França, Reino Unido e União Soviética.

“Simplificando, pode-se dizer que até hoje, por um lado, há autores (como Paul Fussell e Herbert Feiss) que seguem a narrativa oficial do governo do presidente norte-americano Harry Truman que dizia que os japoneses não estavam se rendendo mesmo no final e que o Japão, por ser um arquipélago de difícil acesso, exigiria um número grande de baixas norte-americanas para ser tomado por terra”, diz o historiador Angelo Segrillo, coordenador do Laboratório de Estudos da Ásia da Universidade de São Paulo.

“E por outro lado, há autores (como Gar Alperovitz e William Appleman Williams) que negam que esta fosse a principal motivação por trás do lançamento, citando considerações políticas outras – por exemplo, a necessidade de amedrontar a URSS para fazê-la submissa no pós-guerra”, acrescenta. No pós-guerra, URSS e Estados Unidos já estavam em lados opostos e disputando uma corrida armamentista.

“As armas nucleares têm poder tão destruidor que, por muito tempo, pensamos que nunca seriam usadas por potências responsáveis”, diz Segrillo. “Os últimos acontecimentos têm mostrado que, especialmente nos tempos atuais de transição hegemônica, o comportamento racional e responsável sobre o uso dessas armas não deve ser assumido como dado, mas constantemente cultivado, incentivado e vigiado.”

Infográfico

‘Ninguém, em nenhum lugar do mundo, deveria passar pelo que passamos’

“Há muitas lições [da história do Japão], mas acredito que a mais importante é que, tanto na bomba atômica quanto no acidente nuclear, quem sofre é a população comum. Quem decide desenvolver e usar armas e energia nuclear não é quem enfrenta esses riscos e consequências, além da radiação que continua perigosa ao longo de gerações”, diz a pesquisadora Caitlin Stronell, do CNIC (Citizens’ Nuclear Information Center), uma das maiores organizações civis antinucleares do Japão, e editora da revista digital Nuke Info Tokyo.

“A maior lição, uma que talvez o Japão também esteja enfrentando ainda, é que nós devemos questionar as autoridades, ouvir outras vozes e levantar as nossas se pensamos que há algo de errado”, acrescenta.

A questão que o Japão também talvez esteja enfrentando, a que se refere Stronell, é o fato de o arquipélago ainda priorizar a energia nuclear, e não as alternativas energéticas, mesmo depois das experiências nucleares trágicas e de décadas de pressões de ativistas e acadêmicos. Além disso, o governo japonês até hoje não assinou o Tratado de Proibição de Armas Nucleares das Nações Unidas para banir arsenais atômicos, acordo internacional proposto em 2017. Os Estados Unidos também não ratificaram o documento.

“Nosso futuro energético deve ser democrático e seguro, não deve envenenar o ambiente. Em outras palavras, energia nuclear não tem vez”, diz a pesquisadora, ao lembrar que esta sexta-feira, 11 de março, marcou o 11o aniversário do desastre de Fukushima.

Segundo Stronell, a própria presença de usinas já é um risco num território sob conflito. “A guerra na Ucrânia indica claramente que a dita ‘segurança’ com Estados-nações se ameaçando nunca levará à paz. Nem os reatores nucleares dos Estados ‘não-nucleares’ [os signatários do tratado das Nações Unidas] podem ser considerados pacíficos, pois os reatores podem ser utilizados como uma ameaça, assim como são as armas nucleares. Usinas criam todo tipo de vulnerabilidades, especialmente em tempos de crise”, considera.

Nascida na Austrália, mas radicada no Japão desde 1990, Stronell era uma estudante colegial quando visitou o Parque Memorial da Paz de Hiroshima pela primeira vez. A Guerra Fria (1947-1991) ainda não tinha terminado e, na época, não era muito comum encontrar estrangeiros vivendo no Japão – era comum supor que todos fossem norte-americanos, devido à ocupação dos Estados Unidos após o Japão se render.

“Tive sentimentos contraditórios ao ir para Hiroshima. Se pensassem que eu era americana, eles me odiariam, eu imaginei. E eu entenderia. Mas, ao contrário, ao entrar no museu, um guia voluntário se ofereceu para me explicar as exposições. Vi cicatrizes nas suas mãos, ele era um sobrevivente. Ele foi tão amigável e respondeu a minhas perguntas por 2 ou 3 horas. Foi o oposto do que eu estava esperando”, conta.

“No fim, perguntei: como você pode ser tão gentil comigo? Ele me olhou nos olhos e respondeu: porque a coisa mais importante é que isso nunca aconteça de novo; ninguém, em nenhum lugar do mundo, deveria passar pelo que nós passamos.”

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Fonte: BBC