A guerra na Ucrânia completa um ano nesta sexta-feira (24). O conflito, que já deixou milhares de mortos e de desabrigados, parece longe do fim.

O país liderado por Volodymyr Zelensky resiste aos ataques da Rússia, com fôlego adicional obtido a partir do apoio de países do Ocidente e de membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

Quando se fala em guerras, um dos maiores receios da comunidade internacional é a escalada do conflito para um enfrentamento nuclear que pode ser devastador para a humanidade.

Pesquisadores e cientistas políticos consultados pela CNN avaliam os potenciais riscos do uso de armas nucleares na guerra entre a Rússia e a Ucrânia.

Existem diferentes tipos de armas nucleares, com objetivos e poder destrutivo distintos. As armas táticas são voltadas a ataques pontuais, que atingem tropas ou bases militares de maneira limitada e concentrada. Já as armas estratégicas contam com um maior poder destrutivo e podem levar a uma ampla contaminação radioativa do ambiente, colocando em risco um número de pessoas inestimável.

O professor da Universidade de Brasília (UnB) Antônio Jorge Ramalho da Rocha aponta que há indícios de que a Rússia pode avançar na direção de empregar armas nucleares – nesse caso, as táticas.

“Há indícios importantes de que a Rússia pode avançar na direção de empregar armas nucleares táticas. A doutrina russa de emprego de artefatos nucleares prevê seu emprego em caso de ‘ameaças existenciais’ ou ao seu território. Em mais de uma ocasião, o porta-voz do Kremlin e o próprio presidente Putin lembraram a comunidade internacional disso”, afirma Rocha.

Entretanto, a tendência não é escalar para o emprego de artefatos nucleares no futuro previsível, segundo o especialista. A guerra está longe do fim e há muitas possibilidades de escaladas convencionais, ou mesmo inovadoras, antes do recurso a armas nucleares.

“O segundo aspecto da questão é que a Rússia entende as implicações do emprego dessas armas, razão pela qual também vem reafirmando sua tradicional postura de ‘não-emprego inicial’, isto é, de não ser o primeiro a utilizar armamentos nucleares de qualquer natureza, já que isso pode levar a reações em cadeia, a uma escalada que coloque a humanidade em um ponto de não-retorno”, acrescenta.

Para os pesquisadores, a Rússia vem conduzindo uma postura de maneira racional até agora, o que indica uma disposição a continuar no emprego de armas convencionais combinadas a instrumentos de guerra híbrida – como mercenários, comandos descaracterizados, ataques cibernéticos, fake news orientadas a dividir seus adversários e inimigos.

“Sim, a Rússia está ameaçando escalar um conflito para um nível mais alto nuclear há um ano e não o faz. Por que se utilizasse armas nucleares, principalmente contra o Ocidente, seria garantido uma retaliação do Ocidente”, afirma o professor Kai Enno Lehmann, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP).

“Isso eu imagino que significaria o fim do regime de Vladimir Putin. No final das contas, muitas pessoas, inclusive o Putin, e muitos daqueles que dependem dele para se sustentar em uma posição de poder não querem isso”, completa.

Influência da elite russa

O pesquisador russo Aleksandr Sherstobitov, estudioso de ciências políticas e colaborador no Instituto de Relações Internacionais da USP, avalia que os objetivos da elite russa e de Putin não parecem tão radicais.

“Certamente, as ações dos países ocidentais e seu apoio à Ucrânia são consideradas pelas elites russas como a escalada do conflito. No entanto, quando falamos de questões nucleares sempre nos concentramos no equilíbrio e analisamos o confronto de um ponto de vista racional. O ponto de partida aqui é que o uso de armas nucleares é completamente irracional. Nesta perspectiva, os cientistas muitas vezes olham para a situação através das lentes da teoria dos jogos. E a sabedoria convencional diz que a escalada do conflito em uma guerra nuclear sempre tem um resultado perde-perde”, explica.

Sherstobitov afirma que, no entanto, pairam preocupações sobre quais são os objetivos dos líderes autoritários, uma vez que eles podem diferir dos democráticos e ter outros incentivos.

“Se nos referirmos à estratégia de Putin na Ucrânia, vários objetivos parecem ser relevantes para as elites russas e para Putin: primeiro, manter o poder político dentro da Rússia e a influência na área pós-soviética; segundo permanecer na história como ‘o arrematador da terra’; terceiro, alcançar o status quo com a Otan, pelo menos nas esferas dos interesses da política externa russa. Nenhum desses objetivos pode ser alcançado com armas nucleares, seja guerra nuclear total ou ataque nuclear tático no território ucraniano”, avalia o pesquisador.

O pesquisador russo aponta que há uma exceção neste cenário.

“O ataque nuclear pode ser possível quando Putin não tiver mais nada para fazer ou souber que está à beira da morte. Existem pelo menos duas limitações para a probabilidade de um ataque nuclear neste modelo”.

Primeiro, parece que Putin está em uma “armadilha de informação do ditador”, afirma Sherstobitov.

“Há muitas evidências no ano passado de que ele obtém informações muito ruins sobre o que está acontecendo na Ucrânia e dentro da Rússia. Ao mesmo tempo, ele ainda tem poder absoluto para tomar decisões. Por isso houve muitas decisões equivocadas determinadas pela falta de informação e/ou assimetria informacional. Os representantes da elite que têm acesso direto a ele limitam as falhas de informação para atingir seus próprios objetivos. Por exemplo, eles dizem mentiras que ele gosta para obter seu favor”, explica.

O especialista avalia que a comitiva de Putin pode jogar com a limitação de informações, com o objetivo de salvar suas vidas, ativos e desenvolver suas próprias estratégias políticas de elite interna.

“Em segundo lugar, ainda existem várias pessoas envolvidas nessa tomada de decisão. Além disso, depois que o ‘botão vermelho’ é pressionado, há uma cadeia de pessoas que estão envolvidas no processo até o fundo. Portanto, há alguma probabilidade de que não funcione em algum estágio ou nível. Quanto mais pessoas estiverem envolvidas, menor a probabilidade de um ataque nuclear, porque nessas circunstâncias cada um é o ‘jogador’ no modelo teórico do jogo”, pontua.

Para Sherstobitov, o pico mais possível de tal confronto é a demonstração da capacidade nuclear. “E Putin faz isso. Haverá um verdadeiro treinamento de ataque nuclear para mostrar o clima decisivo. Também vemos que as elites dos países ocidentais são muito cautelosas quando se trata do escopo de sua ajuda à Ucrânia. Eles também enviam o sinal de que não querem uma escalada e estão tentando manter o status quo no teatro militar”, afirma.

Segundo o estudioso, ainda existem outras maneiras de Putin e as elites russas responderem às estratégias ocidentais.

“Eu diria que, de acordo com a retórica recente do presidente bielorrusso Lukashenko, parece que a reação mais potencial para a ajuda ocidental à Ucrânia será o engajamento das forças de Belarus e, menos possivelmente, das forças da Organização do Tratado de Segurança Coletiva”, conclui.

Soldado ucraniano caminha em frente a prédio em chamas na cidade de Bakhmut, na linha de frente da guerra / 13/02/2023 Forças Armadas da Ucrânia/Divulgação via REUTERS

Papel da Otan e a resistência da Ucrânia

Após semanas de debates dentro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), os governos da Alemanha e dos Estados Unidos aprovaram o envio de tanques para fortalecer a defesa da Ucrânia.

“A guerra na Ucrânia é justamente uma demonstração de forças da Rússia mostrando a sua inconformidade com o avanço do Ocidente, em especial da Otan, para as suas antigas zonas de influência”, afirma o professor Lucas Pereira Rezende, do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “A Otan é toda a razão de ser da guerra. O discurso do presidente Vladimir Putin é precisamente que a Rússia não podia mais aceitar os avanços da Otan para as suas antigas zonas de influência e que a presença da Otan na Ucrânia seria uma ameaça à segurança e portanto uma ameaça à existência da própria Rússia”, completa.

A opinião é compartilhada pelo professor da Universidade de Brasília (UnB) Antônio Jorge Ramalho da Rocha.

“Para a Rússia, a Otan, ao expandir-se para o Leste, provocou o conflito. Da mesma forma, a Rússia não se vê em guerra contra a Ucrânia, mas contra o Ocidente, em defesa de seus valores – um ‘povo que professa uma fé e fala um idioma’ na Ucrânia. Não se trata apenas da Otan, uma aliança militar, mas também da União Europeia, que materializa um modo de vida percebido por Putin como inaceitável para o seu povo. Para Putin e os seus, a Ucrânia precisa continuar, no mínimo, como uma espécie de ‘Estado tampão’, que lhe assegure profundidade estratégica suficiente para defender-se de eventuais ataques do Ocidente. Dado que já não se pode esperar isso do governo da Ucrânia, Putin tomou a decisão de ocupar parte do país”, diz o professor.

Para o pesquisador da UFMG, um envolvimento direto da Otan no conflito significaria uma declaração de guerra à Rússia.

“Por isso, os países da Otan não entraram com forças próprias na Ucrânia, por que isso significaria sem dúvida nenhuma um escalada muito grande. O prolongamento da guerra dificulta um distensionamento nuclear, então quanto mais a guerra continua, a gente tem também a continuidade da tensão nuclear entre Estados Unidos e Rússia”, explica. “Agora, a possibilidade de que a Rússia faça um primeiro ataque nuclear seria catastrófica. A Rússia sabe disso, por que se ela fizer um ataque nuclear, a possibilidade de retaliação é grande. Ainda que se ela fizer um ataque na Ucrânia, não será um ataque a nenhum país membro da Otan”, detalha.

A resistência da Ucrânia ao longo de um ano de guerra surpreende o mundo. Para especialistas em relações internacionais, o apoio da Otan contribui de maneira significativa para que o país se mantenha de pé no embate contra a potência russa – mas há outros fatores.

“A desproporcionalidade de forças é gigantesca. Ainda assim, a guerra está fazendo um ano e a Ucrânia segue resistindo. Por que tem recebido transferência de dinheiro, transferência de armamento e armamentos pesados. A Alemanha enviou tanques, o que é muito significativo para o tipo de guerra que está sendo desenvolvido na Ucrânia. Então, a resistência da Ucrânia não tem dúvida que permanece até hoje por conta da ajuda ocidental, que prolonga a guerra e é ruim para os dois lados evidentemente. Mas é claro que a Ucrânia tem o direito de se defender de uma invasão estrangeira”, afirma Rezende.

“Vários fatores explicam a resistência da Ucrânia. De início, o fato de lutar por seu território. Em seguida, a coesão interna e a atitude corajosa de Zelenski, que reforçou o sentimento de independência e coesão nacional na Ucrânia. Há certa sobreposição de identidades culturais com valores nacionalistas no caso ucraniano; a guerra reforçou, para o povo ucraniano, o sentimento nacionalista, em contraste com as convicções de Putin e seus apoiadores, que enxergam a Ucrânia como parte da grande Rússia”, afirma Rocha.

Para os especialistas, um recuo da parte do presidente russo Vladimir Putin é algo pouco provável neste cenário.

“É muito difícil que o Putin recue sem que ele tenha as suas principais demandas atendidas, que são a anexação de partes que fazem fronteira, da região de Donetsk. Então, é bastante improvável que o Putin recue por que o que está em jogo também, é importante que se entenda, é a permanência dele no poder ali dentro da Rússia. Ele precisa ter uma justificativa doméstica, ainda que seja um governo de caráter cada vez mais autoritário e antidemocrático, portanto, ele precisa ter algum grau de legitimidade doméstica”, afirma Rezende.

Apenas uma negociação mais ampla, que colocasse o conflito em outra perspectiva, envolvendo terceiras partes poderia criar uma saída honrosa para todos, avalia Rocha. “Em não sendo assim, a tendência dessa guerra é estender-se por longo período, desgastando as partes até que uma delas já não tenha condições de lutar. Quanto mais tempo durar, melhor para Putin, desde que ele consiga mobilizar apoio interno a seus objetivos”, diz.

Fonte: CNN Brasil