• Ángel Bermúdez (@angelbermudez)
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Há 8 horas

Bandeira do Texas

Crédito, Getty Images

Na década de 1820, milhares de colonos americanos se estabeleceram no Texas contando com aprovação e incentivo do México

Foi uma ferida, em parte autoimposta, que causou um trauma duradouro no orgulho nacional do México.

A perda do Texas, em 1836, e a incapacidade do governo mexicano de reconquistar esse território nos anos anteriores à sua integração com os Estados Unidos, ocorrida em 1845, ainda são sentidas no país.

“Isso é algo que desde então afetou o senso de identidade dos mexicanos e alimentou o nacionalismo mexicano”, diz o historiador Miguel González Quiroga, ex-professor da Universidade Autônoma de Nuevo León e atual pesquisador visitante da Universidade do Texas em San Antonio.

Essa expropriação territorial, no entanto, foi em parte consequência de uma realidade demográfica inescapável: para cada mexicano que residia naquele território, havia cerca de 10 colonos de origem americana.

Curiosa e paradoxalmente, esses americanos não ocuparam à força o território do Texas nem, em sua maioria, entraram ilegalmente nele.

Muito pelo contrário: eles se estabeleceram ali com a permissão do governo mexicano, que também deliberadamente os atraiu usando uma generosa política de transferência de terras como incentivo.

“Sem dúvida, a perda do Texas foi um caso de consequências não intencionais”, diz Greg Cantrell, professor de história na Texas Christian University, à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.

A iniciativa de criar colônias anglo-americanas no Texas surgiu no fim do domínio espanhol sobre o México, mas só se materializou após a independência daquele país.

Missão religiosa no Texas

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No início do século 19, as missões religiosas eram as principais instituições presentes no Texas

Olhando para trás, essa decisão parece difícil de explicar, não apenas devido às consequências negativas para o México, mas também porque cidadãos americanos haviam tentado invadir territórios estrangeiros militarmente por sua própria conta e risco.

“É incompreensível que depois das invasões obstrutivas e do expansionismo do país vizinho, os governos espanhol e mexicano tenham concordado em permitir o assentamento de colonos americanos (no Texas)”, diz a historiadora mexicana Josefina Zoraida Vázquez.

Mas por que o México fez isso?

Tudo começou com os chamados “300 de Austin”.

Terras como incentivo

O estabelecimento de colonos americanos no Texas começou na década de 1820 e foi impulsionado por Moses Austin, um americano que na década de 1790 emigrou para o sudoeste do Missouri, então parte da Louisiana espanhola.

Certificado de terra emitido por Stephen Austin

Crédito, Texas State Historical Association

Acesso a terras baratas no Texas foi um grande incentivo para os colonos; acima, certificado de terra emitido por Stephen Austin

Moses conseguiu prosperar lá e até obteve um passaporte espanhol, mas sua sorte mudaria depois que a venda da Louisiana da França para os EUA foi finalizada, em 1803.

“Para ele não foi uma bênção a notícia de que, com a compra da Louisiana, o território se tornou americano. Afetado pela guerra de 1812 e pelos altos e baixos da economia, em 1819 Moses estava falido. Ao lembrar-se de sua experiência positiva na Louisiana espanhola, ele decidiu emigrar ao Texas e solicitar uma concessão para se estabelecer com 300 famílias”, escreveu Vázquez no livro México e o Expansionismo Americano.

Em janeiro de 1821, Moses obteve autorização das autoridades espanholas para criar aquela colônia no Texas, mas morreu pouco depois, de modo que a tarefa foi deixada para seu filho Stephen F. Austin, conhecido nos Estados Unidos como “o pai do Texas”.

Stephen decidiu continuar os planos de seu pai e mudou-se para San Antonio para tentar convencer as autoridades espanholas sobre se podia dar continuidade à empreitada de seu pai.

“Austin entrou em San Antonio, literalmente, no mesmo dia em que chegaram as notícias sobre a independência do México, então disseram-lhe que viajasse à Cidade do México para apresentar sua petição às novas autoridades nacionais”, diz Cantrell.

Lá ele ficou um ano, durante o qual aprendeu a falar espanhol, enquanto fazia seus negócios e esperava por suas respostas.

Além de conseguir que o México lhe permitisse levar adiante o projeto do pai, Austin mais tarde obteria a aprovação de uma nova lei que criava o sistema de empresários, nome dado aos que implementavam colônias autorizadas no Texas e que seriam recompensados com terras: quanto mais colonos houvesse, mais terra eles receberiam.

Recrutando colonos

Para obter autorização do governo mexicano, Austin teve que concordar que os colonos jurassem lealdade ao México, aprenderiam espanhol e se converteriam ao catolicismo.

Stephen F. Austin

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Stephen F. Austin é considerado “o pai do Texas”

Nem todos esses requisitos, entretanto, foram cumpridos estritamente.

“As partes incômodas dessas regras foram amplamente ignoradas, principalmente no que diz respeito ao catolicismo. Isso nunca foi aplicado de forma substancial. A grande maioria dos colonos não era católica e nunca se converteu. Alguns deles chegaram a parar na última igreja católica na Louisiana, antes de cruzar para o Texas, e foram batizados, mas a maioria deles nem se importou”, diz Cantrell.

“As autoridades mexicanas e Austin tinham uma espécie de pacto de silêncio: contanto que você não criasse problemas por questões religiosas, conduzindo serviços religiosos públicos em templos protestantes ou criticando a regra que o obrigava a se tornar um católico, estava tudo bem”, acrescenta.

Entre 1821 e 1823, Austin publicou anúncios no sul dos Estados Unidos à procura de famílias interessadas em se estabelecer em sua colônia.

A atração principal? A possibilidade de obter grandes quantidades de terras a um preço equivalente a um décimo do que custavam nos Estados Unidos.

A lei de colonização estabelecia que os fazendeiros receberiam cerca de 0,7 quilômetros quadrados de terra, enquanto os fazendeiros receberiam quase 18 quilômetros quadrados, o que fazia com que a maioria dos assentados se passasse por fazendeiros, mesmo que não o fossem.

Como se não bastasse, as famílias tiveram a possibilidade de trazer ou ter escravos.

Esse foi um elemento que se provaria fundamental tanto para o estabelecimento das colônias quanto para a evolução da situação política no Texas.

Com essa oferta atraente, Austin não demorou muito para arrebanhar seus colonos. Na verdade, ele pôde escolher entre os candidatos e privilegiou aqueles que tinham melhor situação econômica e social.

No final do verão de 1824, a maioria das primeiras 300 famílias autorizadas estava no Texas (por isso são conhecidas como Austin 300 (300 de Austin, em tradução livre), embora, na realidade, fossem 297, pois algumas famílias receberam mais de uma autorização).

Reconstruindo o sul dos EUA no norte do México

A maioria das 300 famílias de Austin veio de Estados do sul dos EUA, especialmente Louisiana, Alabama, Arkansas, Tennessee e Missouri.

Mapa do Texas desenhado por Stephen Austin em 1822

Crédito, Historical

Mapa do Texas desenhado por Stephen Austin em 1822

Apenas uma pequena parte dessas famílias trazia escravos e, entre elas, a maioria possuía apenas dois ou três. No entanto, a escravidão foi um elemento central da colonização do Texas.

“Ter escravos era algo que só os ricos podiam pagar, mas quase todos os colonos aspiravam a tê-los porque esse era o caminho para o sucesso no mundo do algodão”, explica Greg Cantrell à BBC News Mundo.

Cantrell assinala que, embora a maior parte dos colonos inicialmente tenha se dedicado à agricultura de subsistência, o objetivo era reproduzir o boom econômico das plantações de algodão, que haviam tornado o sul dos Estados Unidos um dos lugares mais ricos do mundo.

“Todos pensaram que se pudessem recriar o Mississippi no México, um dia seriam ricos. Era esse o seu verdadeiro cálculo. Pensavam que conseguiriam produzir muito algodão ou, pelo menos, vender uma parte daquele imenso território que receberam do governo do México e obter um bom lucro por isso”, explica Cantrell.

“Ninguém podia cultivar tanta terra. Nem mesmo o colono que tinha mais escravos poderia semear mais do que uma fração daqueles 4.428 acres (cerca de 18 quilômetros quadrados). Mas os 300 de Austin e os muitos milhares eram movidos pela cobiça”, acrescenta.

Perto da escravidão, longe da Cidade do México

Após trazer as primeiras 300 famílias, Stephen Austin recebeu autorização das autoridades mexicanas para fundar mais quatro colônias. Ao todo, trouxe cerca de 1 mil famílias para o Texas.

Plantação de algodão no Texas

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Colonos estabeleceram plantações de algodão operadas com trabalho escravo no Texas. Essa imagem data de 1930, quando escravidão já havia sido abolida

Em ritmo acelerado, novas colônias também foram estabelecidas, promovidas por outros empresários.

Não demoraria muito para que as primeiras tensões surgissem com as autoridades da Cidade do México.

Os colonos anglo-americanos apostavam que o Texas se tornaria um Estado com ampla autonomia dentro da estrutura de um México federal, mas não tiveram sucesso e foram integrados no mesmo Estado junto com Coahuila.

Essa autonomia foi vista como a chave para proteger seu modo de vida.

“Se o Texas alcançasse um tipo de autonomia que lhe tivesse permitido manter a escravidão e o comércio com quem quisesse, sem tarifas ou restrições; se eles pudessem cuidar de seus próprios assuntos sendo um Estado do México, então isso teria sido para os colonos o melhor dos mundos”, argumenta Cantrell.

Mas essa não era a situação real.

“O México era um país antiescravista praticamente desde 1820, então as autoridades da Cidade do México não entendiam bem que o grande plano para fazer do Texas um território próspero era se tornar parte dessa próspera economia do algodão, com a qual foram criadas grandes fortunas. Mas isso só poderia acontecer onde a escravidão fosse permitida”, acrescenta.

A partir de 1821, as autoridades mexicanas fizeram várias tentativas de erradicar definitivamente a escravidão naquele país e no Texas, o que gerou grande preocupação entre os colonos anglo-americanos, que por diversas vezes conseguiram contornar essas medidas isentando-se ou inventando novas figuras como a dos “empregados não pagos” que estavam vinculados a contratos de trabalho vitalícios.

Ruptura

As tensões entre os colonos anglo-americanos e o governo do México aumentariam notavelmente depois de 1830, quando o governo mexicano aprovou uma lei que proibia a chegada de mais imigração ao Texas.

Antonio López de Santa Anna

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Virada centralista de Santa Anna para o governo mexicano acelerou o rompimento com os colonos anglo-americanos

A regra baseou-se nas recomendações do general José Manuel Mier y Terán, que depois de fazer um tour pelo Texas ficou alarmado ao descobrir que o número de colonos ultrapassava em muito o dos mexicanos, pelo que recomendou o fechamento das fronteiras daquele estado aos americanos, promover a chegada de mais população europeia e mexicana e proibir a escravatura, entre outras medidas.

Medidas desse tipo eram motivo de protesto e preocupação entre os colonos que, desde pelo menos 1826, vinham promovendo revoltas intermitentes contra o Estado mexicano.

As tensões, no entanto, começaram a cessar em 1834, depois que o presidente Antonio López de Santa Anna dissolveu o Congresso e acabou com a estrutura federal para estabelecer um governo centralista no México.

“Quando ele (Santa Anna) anunciou que marcharia com um Exército no Texas para acabar com os tumultos crescentes, os anglo-texanos compreenderam estarem enfrentando seu cenário mais temido porque a escravidão não sobreviveria ao governo de Santa Anna. Ao se darem conta disso, todo mundo se entusiasmou com o movimento de secessão”, diz Cantrell.

O historiador afirma que, até há relativamente pouco tempo, na história do Texas, o papel que a escravidão desempenhou na separação do México foi minimizado, mas ele afirma que se tratou de um elemento crucial.

“Eles sabiam que não podiam anunciar publicamente que estavam preocupados com a continuidade da escravidão e por causa disso iam declarar a independência. Eles sabiam que passariam uma imagem ruim ao dizer que sua revolução buscava preservar a escravidão, mas todos sabiam que isso era um elefante na sala, sobre o qual ninguém queria falar. Mas foi, de fato, um fator de extrema importância (para a secessão)”, explica.

O confronto entre as forças de Santa Anna e os colonos anglo-americanos duraria alguns meses e terminaria na batalha de San Jacinto, em abril de 1836, após a qual se consumou a separação do Texas do México.

Álamo

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Tropas de Santa Anna derrotaram os colonos na Batalha do Álamo

Esquivando-se do inevitável

Mas por que razão a Espanha, primeiro, e o México, mais tarde, acreditaram que seria uma boa ideia permitir o estabelecimento de colônias anglo-americanas no Texas?

“O México se viu na necessidade de povoar seus territórios ao norte porque esses estavam sob a ameaça do império espanhol, do império francês e do novo país que se formara (Estados Unidos), mas não tinha recursos nem gente suficiente colonizá-los”, explica Quiroga.

Ele também aponta que esses territórios estavam sob constante ameaça de tribos nativas, especialmente os Comanches, portanto, povoá-los também foi uma forma de protegê-los desses ataques.

Embora enfatize que a maioria dos colonos era pacífica e mantinha boas relações com o México, o historiador reconhece que o peso demográfico que alcançaram no Texas teve uma importância decisiva em sua separação. Quando os mexicanos perceberam isso, já era tarde demais, acrescenta Quiroga.

Uma das famílias que fazia parte das 300 de Austin

Crédito, Texas State Historical Association

Uma das famílias que fazia parte das 300 de Austin

Greg Cantrell, por sua vez, considera que a decisão de permitir o estabelecimento de colonos no Texas foi uma medida com a qual o México tentou evitar a perda daquele território, tentando exercer algum controle sobre um processo que parecia inevitável dada a rápida expansão dos Estados Unidos.

“A questão era: temos essa região fértil na fronteira com os Estados Unidos e podemos perdê-la para imigrantes ilegais que, assim que forem grandes o suficiente, vão querer se separar do México, ou podemos permitir a entrada de americanos colonos que serão controlados e que serão leais ao governo enquanto estiverem sob o olhar atento de empresários como Stephen Austin”, diz ele.

“Eles viram a presença de americanos no Texas como um mal menor. Mas não havia alternativa: seriam ilegais ou legais”, acrescenta.

De qualquer forma, o resultado acabou sendo o mesmo que se temia.

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Fonte: BBC