Foi fácil de deixar passar no discurso do presidente da Rússia, Vladimir Putin, ao parlamento na semana passada uma referência superficial à possibilidade de o país retomar os testes nucleares.

Em um movimento surpresa, Putin disse que a Rússia estava pronta para retomar os testes de armas nucleares se os Estados Unidos realizassem um primeiro.

Embora a maior parte do foco da imprensa tenha sido o governo russo suspendendo sua participação no novo tratado de armas nucleares “START”, esse anúncio foi igualmente significativo, com consequências potencialmente devastadoras.

Isso significaria mais um passo em direção à escalada na Ucrânia, ao demonstrar a intenção de usar armas nucleares, e poderia iniciar outra corrida armamentista nuclear mais devastadora.

Nem a Rússia, nem os EUA, realizaram um teste deste tipo de armamento desde o início dos anos 1990. Logo depois disso, eles negociaram o Tratado de Proibição de Testes Nucleares Abrangente (CTBT) em Genebra.

Embora a Índia e o Paquistão tenham realizado testes nucleares em 1998, apenas a Coreia do Norte continuou a testar ogivas nucleares desde então.

Se a Rússia retomasse os testes, outros Estados com armas nucleares poderiam seguir o exemplo. Os norte-coreanos, por exemplo, certamente tomariam isso como carta-branca para novos lançamentos, e haveria preocupação nos EUA sobre a possibilidade de ficar para trás da Rússia no desenvolvimento de novas capacidades nucleares.

Tudo isso, potencialmente, levando a uma nova dinâmica de corrida armamentista.

Os Estados Unidos não têm motivo ou intenção de retomar esses lançamentos, mas, ao inserir isso em seu discurso do “Estado da Nação”, Putin parece estar criando uma falsa narrativa de que os americanos estão trabalhando em um teste de armas nucleares para justificar a Rússia quebrando o tratado CTBT.

De fato, a agência de notícias russa TASS informou no início de fevereiro, dias antes do discurso de Putin, que o local de testes nucleares de Novaya Zemlya está pronto para ser retomado, se necessário.

Por que começar a testar novamente?

Em primeiro lugar, como um sinal de intenção de passar por cima de todos os acordos nucleares, demonstrando sua capacidade e determinação – nacional e internacionalmente – para usar armas nucleares.

E em segundo lugar, porque a Rússia está desenvolvendo novas capacidades nucleares e não tem dados suficientes sem novos testes de ogivas.

Nenhuma das razões é reconfortante. Um teste de armas nucleares russas destruiria várias décadas de acordos internacionais e qualquer sensação de certeza nos esforços de não proliferação.

O CTBT sustenta o Tratado de Não-Proliferação (NPT) ao criar uma premissa crível de que os Estados reduzirão seus arsenais nucleares ao longo do tempo, em vez de continuar a expandí-los.

Significado dos lançamentos

Isso fomentaria preocupações em outros países com armas nucleares de que a Rússia pode obter informações valiosas a partir de dados de teste que atualmente não possuem.

Isso pode levar a mais Estados fazerem testes, à medida que modernizam seus arsenais. Nos EUA, algumas figuras políticas provavelmente pediriam isso, não querendo ser superados pela Rússia ou ficar para trás.

Uma nova corrida armamentista nuclear surgiria com várias potências competindo, em meio a poucas restrições remanescentes do tratado.

Ao abandonar o CTBT e expandir seus arsenais nucleares, a Rússia e quaisquer outros Estados que se juntassem a uma nova série de testes prejudicariam seriamente o Tratado de Não Proliferação.

Imagem do Ministério da Defesa da Rússia do que seria um míssil balístico intercontinental Yars em exercícios das forças nucleares estratégicas do país / . 26 de outubro, 2022. Ministério da Defesa Russo/Handout via REUTERS

É difícil ver como ele poderia se recuperar de um afastamento tão drástico de sua promessa central – que os cinco países com armas nucleares reduziriam sua dependência deste arsenal –, resultando em desarmamento completo e irreversível.

Também aumentaria o potencial de outros países buscarem armas nucleares novamente. A Coreia do Sul já insinuou várias vezes investir em um programa nuclear se a ameaça da Coreia do Norte não diminuir. Um retorno a uma corrida armamentista nuclear global pode levá-los ao limite.

Os testes nucleares também podem ser interpretados como um sinal de maior escalada, demonstrando a determinação da Rússia em usar estes dispositivos na guerra ou uma escalada do conflito entre a Rússia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).

Isso significaria uma mudança radical das ameaças retóricas de Putin para uma realidade perigosa que poderia facilmente sair do controle.

O que poderia ser feito na iminência de um teste?

Um teste de armas nucleares russas não aconteceria do nada. Os serviços de inteligência seriam capazes de ver os preparativos com antecedência.

Os EUA e o Reino Unido têm compartilhado atualizações regulares de inteligência de defesa desde antes da invasão da Ucrânia, para sinalizar à Rússia que seus motivos são transparentes e para ajudar os aliados a se coordenarem.

Eles poderiam usar esse mesmo mecanismo para chamar a atenção para um próximo teste e tentar evitá-lo.

Nesse caso, a comunidade internacional deve trabalhar em conjunto para impressionar a Rússia com sua seriedade e coerência contra um teste de armas nucleares.

Um teste de armas nucleares russas não aconteceria do nada. Os serviços de inteligência seriam capazes de ver os preparativos com antecedência.

Marion Messmer

A resposta deve ser aumentar imediatamente as sanções até que a Rússia reverta qualquer preparação para o lançamento. A União Europeia deve agir mais rapidamente em relação às sanções do que antes.

Conhecendo os riscos, outros Estados que até agora evitaram tomar posição podem mudar e se juntar à pressão transatlântica sobre a Rússia.

A China e a Índia também têm um papel fundamental a desempenhar. Até agora, eles adotaram uma postura ambivalente em relação à Ucrânia, abstendo-se nos votos da ONU e recusando-se a condenar o governo russo externamente. No entanto, criticaram suas ameaças nucleares.

A China tem mostrado que não está confortável com tamanha ousadia e também não quer ver a Rússia ou os EUA investindo na expansão e desenvolvimento de seus arsenais.

Vendo tais preparativos de teste, a China poderia ameaçar retirar seu apoio político e econômico à Rússia, o que seria um duro golpe para as ambições militares de Putin.

O que poderia acontecer caso o lançamento acontecesse?

Ao conduzir um teste de armas nucleares, Putin pode muito bem querer assustar os Estados ocidentais para que deixem de apoiar a Ucrânia.

No entanto, é muito mais provável que os estados-membros da Otan, preocupados com a escalada, simplesmente dobrem seu apoio.

Não há boas opções neste cenário: uma resposta convencional da Otan também pode ser uma escalada. Uma mudança nos níveis de alerta nuclear enviaria um forte sinal para a Rússia, mas também poderia provocar uma nova escalada.

Uma nova corrida armamentista nuclear pareceria diferente daquela da Guerra Fria. Não seria mais uma corrida, em grande parte, entre a Rússia e os EUA, e certamente incluiria a China – e teria outras implicações na dinâmica nuclear regional.

No caso de um teste nuclear russo, todos os outros países com armas do tipo (com exceção da Coreia do Norte, que provavelmente não aderiria) precisariam se unir contra isso e trabalhar para trazer a Rússia de volta à conformidade.

A história tem vários exemplos em que o mundo esteve perto de uma guerra nuclear devastadora, sendo salvo pela boa sorte. Contar com a sorte não é uma boa estratégia, principalmente em uma situação tão complexa e tensa.

Acrescentar a isso uma Rússia cada vez mais isolada, com um presidente que toma decisões sem a contribuição potencialmente moderada de outros altos funcionários, é um cenário para o desastre.

Nota do editor: Marion Messmer é pesquisadora sênior do Programa de Segurança Internacional do think tank Chatham House. Seu foco é o controle de armas, questões de política de armas nucleares e relações Rússia-Otan. As opiniões expressas neste comentário são dela.

Este conteúdo foi criado originalmente em inglês.

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Fonte: CNN Brasil