• Jessica Brown
  • BBC Future

Há 40 minutos

Queijos armazenados

Crédito, Bloomberg Creative/Getty Images

O queijo tem fama de induzir pesadelos ou sonhos intensos quando consumido tarde da noite. Mas isso tem alguma comprovação?

Afirma-se que apreciar o sabor intenso de um gorgonzola ou comer um camembert maduro antes de dormir causa sonhos estranhos ou até pesadelos. Mas os queijos realmente podem influenciar o que acontece enquanto dormimos?

Temos uma estranha relação com os queijos.

Muitas vezes, eles são um dos alimentos preferidos das pessoas – existem festivais totalmente dedicados aos queijos. Provar queijos e harmonizá-los com vinhos, molhos e biscoitos tornou-se uma forma de arte. E também sabemos que ele contém gordura saturada e comer muito queijo pode prejudicar nossa saúde.

Mas algumas pessoas argumentam que o queijo tem um lado sombrio ainda mais surpreendente – ele pode afetar o nosso cérebro enquanto dormimos. Comer queijo tarde da noite, dizem, faz com que as pessoas tenham sonhos estranhos.

Em 1964, um pesquisador observou que um paciente parou de ter pesadelos quando abandonou o hábito de comer 30 a 50 gramas de queijo cheddar todas as noites.

Mais recentemente, o extinto Conselho Britânico do Queijo financiou um estudo em 2005 e concluiu que comer queijos azuis, como o gorgonzola e o roquefort, causa sonhos intensos, enquanto o queijo cheddar faz com que as pessoas sonhem com celebridades. O estudo não foi exatamente consistente do ponto de vista científico, nem foi publicado em revistas revisadas por outros cientistas, mas suas conclusões ajudaram a perpetuar a crença de que o queijo pode influenciar o conteúdo dos nossos sonhos.

Não existem evidências sólidas de que os queijos causem pesadelos — nem, de fato, grandes comprovações de que essa teoria esteja errada. Mas o predomínio dessa teoria poderá ser suficiente para que ela se torne verdade, segundo Tore Nielsen, professor de psiquiatria da Universidade de Montreal, no Canadá, e diretor do laboratório de sonhos e pesadelos da instituição.

“Apenas saber que o queijo afeta os pesadelos poderá induzir sonhos, pois as pessoas são sugestionáveis”, afirma ele.

Mulher come queijo com torrada

Crédito, Getty Images

Existem diversas teorias que afirmam que comer queijo tarde da noite poderá induzir sonhos intensos e, às vezes, terríveis

Outra explicação indireta é o alto teor de lactose do queijo. Em um estudo conduzido por Nielsen em 2015, apenas 17% das pessoas afirmaram que seus sonhos são aparentemente influenciados pela alimentação, mas os laticínios foram os alimentos mais frequentemente relatados como causadores de sonhos perturbadores.

“É muito possível que esses efeitos se devessem a pessoas portadoras de intolerância à lactose”, segundo ele. “É como um efeito indireto no qual a lactose produz sintomas como gases, inchaços e diarreia — que influenciam os sonhos, baseados em fontes somáticas como essas. E, mesmo se você tiver algum tipo de intolerância, pode acontecer de você comer esses alimentos de vez em quando.”

Mas não há evidências que sustentem a teoria de que os laticínios influenciam os sonhos na população em geral. E essa teoria contradiz as observações que deram ao leite de vaca — que também contém alto teor de lactose — a fama oposta de ajudar-nos a dormir. Uma pesquisa recente de 14 estudos e testes de controle aleatorizados conduzidos entre 1974 e 2019 indicou que, como parte de uma dieta balanceada, o leite e laticínios podem melhorar a qualidade do sono.

A reputação do queijo de induzir sonhos intensos poderá também ser explicada, ao menos na Europa, pela tradição de comer queijo durante a última refeição da noite. Comer qualquer alimento tarde da noite poderá afetar a qualidade do sono e muitas vezes o queijo pode acabar levando a culpa sozinho.

“Para ter uma boa noite de sono, a temperatura do seu corpo precisa cair em um grau”, segundo o especialista independente do sono Neil Stanley. “Normalmente não temos problemas com isso, mas, se você comer muita gordura ou açúcar tarde da noite, você precisará queimar as calorias, o que cria calor. Durante o dia, você pode queimar essas calorias. Mas, à noite, o seu corpo não quer trabalhar”, explica ele.

A temperatura do nosso corpo varia enquanto dormimos e, se esse equilíbrio não for mantido, o nosso sono pode ser prejudicado. Comer tarde da noite, por exemplo, causa aumento da temperatura corporal na hora de dormir, o que pode prejudicar o nosso sono.

Basicamente, se estivermos acordando mais durante a noite, isso pode significar que estamos nos lembrando mais dos nossos sonhos. Um estudo concluiu que as pessoas mais propensas a lembrar-se dos seus sonhos acordam mais durante a noite e demoram mais para voltar a dormir.

Pessoas observam queijo rolando por encosta

Crédito, Paul Gapper/Alamy

O nosso relacionamento com o queijo às vezes pode ser um tanto estranho, como nos festivais ingleses que incluem fazer um bloco de queijo rolar por uma encosta

Uma análise de evidências concluiu que a frequência dos pesadelos está relacionada, em parte, aos distúrbios do sono, enquanto outras evidências sugerem que as pessoas que têm pior qualidade de sono sofrem mais com pesadelos.

“Uma razão pela qual o queijo e os pesadelos andam juntos é porque comer mais tarde antes de dormir apresenta grandes possibilidades de prejudicar o sono e o queijo pode ser de difícil digestão”, afirma Charlotte Gupta, pesquisadora da Universidade Central de Queensland, na Austrália, que recentemente publicou uma análise da relação entre a alimentação e o sono.

Mas existem algumas pesquisas que sugerem que, embora comer refeições noturnas altamente energéticas possa elevar a nossa temperatura corporal ao longo da noite, isso não significa necessariamente uma noite de sono ruim.

Sabe-se que o aumento da temperatura corporal afeta os nossos sonhos de outras formas. Há muito tempo, as febres são associadas a sonhos intensos e alucinações. Estudos de sonhos durante acessos de febre sugeriram que eles tendem a ser mais bizarros que os sonhos em temperatura normal.

Mas ainda é preciso pesquisar se o queijo é capaz de induzir aumento suficiente da temperatura corporal para induzir sonhos como os verificados em acessos de febre.

A boa notícia é que alguns alimentos podem nos ajudar a ter melhor qualidade de sono e talvez nos tornar menos propensos a nos lembrar dos pesadelos. Estudos concluíram que comer kiwi pode trazer uma noite de sono com menos perturbações, pois ele é uma boa fonte de serotonina. Já um outro estudo menor encontrou os mesmos efeitos com suco de cereja.

Em um estudo, Gupta concluiu que as pessoas com alimentação mais próxima da dieta mediterrânea – rica em frutas, legumes, verduras e castanhas – têm a melhor qualidade de sono. “O mecanismo por trás desse efeito deve-se provavelmente à composição desses alimentos. Muitos contêm melatonina, que é um hormônio promotor do sono”, segundo ela.

Marie-Pierre St-Onge, professora de medicina nutricional do Centro Médico Irving da Universidade Columbia, em Nova York, nos Estados Unidos, concluiu que as pessoas com alimentação saudável que atendiam às recomendações nutricionais demoravam a metade do tempo para dormir que com sua alimentação normal, que continha mais açúcar e gordura saturada e menos fibras.

“Aparentemente, o consumo de alimentos com maior teor de fibras e alimentos vegetais e menor teor de açúcar e gordura saturada melhora o nosso sono”, segundo St-Onge. O queijo contém baixo teor de fibras e muita gordura saturada – mas não mais que muitos outros alimentos que consumimos, como os alimentos processados.

Não existem muitas pesquisas sobre os mecanismos por trás da qualidade da alimentação e do sono, mas eles podem estar relacionados com o triptofano, um nutriente envolvido na síntese do hormônio melatonina em nossos corpos. O triptofano é liberado à noite e está relacionado com o sono. Ele é encontrado em alimentos ricos em proteínas, incluindo queijo e também carne — especialmente carne de peru — além do peixe, trigo sarraceno, aveia e tofu.

Fora da área científica, esta pode ter sido a origem de algumas das histórias de terror mais antigas que conhecemos. Bram Stoker, por exemplo, aparentemente inspirou-se em um sonho intenso que teve depois de comer caranguejos para escrever Drácula. Já a história do Sr. Jekyll e do Dr. Hyde pode haver ocorrido para Robert Louis Stevenson em um sonho após um farto lanche, tarde da noite.

E não existem evidências que demonstrem a melhor hora do dia para comer alimentos ricos em triptofano, segundo St-Onge. Algumas pesquisas concluíram que comer tarde da noite é ruim para o nosso sono, possivelmente porque o estômago cheio ao dormir pode causar desconforto, segundo os pesquisadores, ou o teor mais alto de açúcar no sangue por comer tarde da noite pode afetar os padrões do sono.

Imagem do filme Drácula

Crédito, Allstar Picture Library/Alamy

Romances góticos de terror como “Drácula” podem ter sido criados em sonhos causados por refeições pesadas ou lanches consumidos tarde da noite

Mas comer os alimentos certos perto da hora de dormir pode realmente trazer uma boa noite de sono.

“Comer perto da hora de dormir não é algo que incentivamos, mas, se você o fizer, é melhor comer alimentos que sabemos que são mais propensos a melhorar o sono”, segundo Charlotte Gupta. Eles poderão incluir alimentos ricos em triptofano, segundo ela, como carne, peixe e tofu.

A qualidade do nosso sono também poderá ser afetada pela forma como comemos queijo e outros alimentos, e não apenas pelo conteúdo da nossa alimentação. Gupta concluiu na sua pesquisa, por exemplo, que a falta de horários normais para as refeições também pode prejudicar a qualidade do nosso sono.

Ir para a cama com fome e sede poderá também causar sonhos mais intensos, segundo a pesquisa de Tore Nielsen. “Os pacientes que relataram manter períodos mais longos entre as refeições tiveram sonhos mais intensos — e sabemos que o jejum é historicamente associado a sonhos intensos”, segundo ele. Mas isso é baseado em crenças espirituais e não em evidências científicas.

Nielsen também encontrou outras possíveis formas em que os nossos comportamentos alimentares influenciam nossos sonhos, incluindo dietas, compulsão alimentar e alimentação movida pelas emoções – mas ele afirma que os dados são limitados. Segundo sua pesquisa, os “comedores intuitivos”, cujo consumo de alimentos é dirigido pela fome e não pela emoção, aparentemente também têm sonhos mais positivos.

Para Nielsen, são necessários estudos de laboratório nos quais as pessoas recebem alimentos específicos antes de irem dormir para testar essas hipóteses. Mas esta seria uma pesquisa delicada.

Quando tomada para análise, a relação entre o queijo e os pesadelos parece ter tantos buracos quanto um queijo suíço. Mas evidências mais genéricas indicam que aquilo que comemos — e de que forma nos alimentamos — poderá fazer a diferença entre uma boa noite de sono e uma noite terrível.

O importante é que podemos tentar melhorar o nosso sono mudando a alimentação, segundo St-Onge. “As pessoas devem prestar atenção ao que elas comem durante o dia e como elas se sentem e dormem, alterando o que for necessário”, afirma ela.

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Fonte: BBC