• Andrea Valentino
  • BBC Future

5 janeiro 2022

Enchentes na Alemanha

Crédito, EPA

Enchentes deixaram impacto devastador na Alemanha e em outras partes da Europa

No meio de 2021, após dias de chuva, o rio Meuse transbordou e a cidade de Liège, na Bélgica, foi sua vítima. Águas de cor marrom correram pela cidade, levando os residentes a usarem canoas enquanto suas casas desapareciam ao seu redor. Na cidade e em sua província, mais de 20 pessoas morreram, sendo que um homem se afogou em seu porão.

E este local no leste da Bélgica não estava sozinho. Na vizinha Alemanha, cerca de 200 pessoas morreram em enchentes no ano passado. A imprensa descreveu o nível das águas como um evento que ocorre uma vez em um século. O impacto financeiro do desastre também foi grande. Perto de Liège, uma única fábrica de chocolate sofreu danos no valor de cerca de 12 milhões de euros (mais de R$ 75 milhões).

No entanto, uma parte do norte da Europa sofreu muito menos. Na Holanda, as enchentes de verão também foram descritas como as piores em um século e os danos materiais foram graves, mas o país sobreviveu ao evento climático sem uma única fatalidade. As razões são muitas: evacuações rápidas, diques fortes e comunicação robusta entre eles. Mas o que sustenta essas formas variadas de defesa contra enchentes é uma instituição: os chamados “comitês da água”, que protegem essa terra por quase um milênio.

Vale a pena entender essas associações pela maneira como combinam a democracia local, a tributação direta e a transparência para colocar a água no centro da vida holandesa.

E a Holanda não está sozinha. Das terras altas da Etiópia às comunidades ao longo do Danúbio, gestores de água em todo o mundo aplicaram aspectos do modelo holandês para suas próprias necessidades, melhorando a vida de milhares de pessoas ao longo do caminho. Em breve, outras regiões poderão precisar se juntar a elas, à medida que os países em todo o mundo enfrentam o aumento das inundações e alagamentos que vêm com as mudanças climáticas.

ilustração

Crédito, Alamy

Os chamados “comitês da água” são responsáveis pelas defesas contra enchentes

Quando Piet-Hein Daverveldt vai para o trabalho todas as manhãs, em meio às igrejas e paralelepípedos da cidade holandesa de Delft, ele diz que enxerga a história ao seu redor. “Obviamente, você está ciente de que é um sucessor”, diz ele. “Você se apoia em muitas pessoas do passado.”

No endereço 167 Oude Delft, é fácil ver o que ele quis dizer. Se você parar ali e olhar para cima, verá os brasões, as delicadas janelas com painéis, a imponente fachada gótica com acabamento de 1505. Este é o gemeenlandshuis da cidade, traduzido como a sede do conselho de água local, onde Daverveldt serve como o presidente – ou dijkgraaf, como seu título é conhecido lá.

Este elegante edifício tornou-se o gemeenlandshuis de Delft em 1645 – e mesmo isso é bastante novo no mundo dos lençóis freáticos. Conhecidos em holandês como waterschap (autoridade da água) ou hoogheemraadschap, alguns remontam ao século 12.

“Os agricultores, em particular, tiveram que se unir para proteger suas terras”, explica Tracy Metz, co-autora de Sweet & Salt: Water and the Dutch (Doce e sal: a água e os holandeses, em tradução livre).

“Claro, cada corrente é tão forte quanto seu elo mais fraco, então houve uma pressão comum para que todos fizessem sua parte para manter suas terras secas.” Mesmo hoje, isso ainda faz sentido em uma nação onde quase um terço da terra e metade das casas ainda estão abaixo do nível do mar. Os polders holandeses (terrenos baixos, planos e alagáveis) e diques precisam ser mantidos coletivamente.

Essa vulnerabilidade natural – “Netherlands” significa literalmente “país de baixa altitude”, ou Países Baixos – ajuda a explicar o poder crescente dos conselhos de água. Na época em que os artistas Vermeer e Rembrandt estavam molhando seus pincéis em meados do século 17, os conselhos podiam cobrar seus próprios impostos e punir os poluidores. Nos escritórios do Rijnland Water Board em Leiden, você ainda pode encontrar um mastro de quase dois metros com um ferrete na ponta – que costumava ser usado para manter as pessoas na linha.

Mesmo assim, diz Metz, os comitês de água eram essencialmente órgãos representativos. Embora não fossem democráticos no sentido moderno, eram administrados em comunidade, com fazendeiros ou burgueses moldando sua organização local. Metz argumenta que os conselhos formaram a base do que viria a ser a democracia holandesa.

funcionaria regula equipamentos

Crédito, Waterschap Zuiderzeeland

Os métodos modernos de gestão da água dos holandeses têm uma história surpreendentemente longa

Os conselhos da água claramente evoluíram a partir daquela época. Onde antes eram 3.500, restam apenas 21, representados por uma associação nacional. Mas, embora seu número tenha sido reduzido, seu papel foi possivelmente estendido: além de organizar e manter as defesas contra enchentes, também são responsáveis ​​pelo controle de qualidade da água, manutenção de rios e canais e tratamento de esgoto.

E sua história distinta ainda se infiltra na vida holandesa contemporânea. Além de belos exemplos construídos em tijolo e pedra, isso pode ser visto claramente na linguagem.

O termo dijkgraaf, por exemplo, tem tons distintamente aristocráticos – significa literalmente “conde dos diques”, servindo como um lembrete impressionante do passado profundamente feudal da Holanda. Enquanto isso, os políticos holandeses usam o verbo polderen para descrever o espírito de cooperação implícito nos comitês de água.

A história dos comitês da água também tem consequências práticas nos dias modernos. Como seus antepassados ​​medievais, por exemplo, os conselhos de água ainda arrecadam verba de forma independente. De modo geral, as famílias pagam dois tipos de impostos: ao município e ao órgão de água. E, como Emilie Sturm argumenta, essa independência traz benefícios financeiros óbvios. Ao contrário de outros lugares, onde a gestão da água disputa por dinheiro com educação ou moradia, o modelo holandês “garante” que os cofres estejam sempre cheios, explica Sturm, gerente de programa do Blue Deal, o órgão que promove a expertise holandesa em água no exterior.

Isso se reflete nas estatísticas: os conselhos de água geram até 95% de seus orçamentos por meio de seus próprios impostos. Compare isso com o Estado americano do Texas, onde o Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano dos Estados Unidos anunciou recentemente que Houston e seu condado não receberiam nenhum novo financiamento para alívio das enchentes – apesar de terem pedido US$ 1,3 bilhão (R$ 7,25 bi).

Ao mesmo tempo, os comitês de água continuam sua longa tradição de governo aberto e eleito. A maioria dos cargos do conselho é agora eleita diretamente pelo público, embora alguns ainda sejam atribuídos a interesses corporativos na indústria, agricultura e meio ambiente. É certo que o holandês médio geralmente não se preocupa com seu conselho local: Rens Huisman, do Conselho de Água de Zuiderzeeland, os compara a árbitros de futebol: você os ignora quando eles trabalham bem.

Mesmo assim, esse poço profundo de localismo é útil. Por um lado, diz Daverveldt, a democracia promove investimentos e monitoramento transparentes. Por outro lado, os conselhos são compostos por especialistas, com conhecimento de sua própria localidade.

Esse regionalismo ficou patente no verão holandês de 2021, quando as diretorias adotaram diversas táticas para combater as enchentes. Em Rivierenland, atravessada por cursos de água, a equipe correu para inspecionar a solidez dos diques locais. Em Limburg, espremido entre a Bélgica e a Alemanha, o conselho propôs uma abordagem regional para cobrir os três países.

pessoas sentadas em sala de reuniões

Crédito, Hoogheemraadschap van Delfland

Os órgãos representativos holandeses incluem representantes eleitos, além de indicados por indústrias

Além da Holanda

Ao sul de Addis Abeba, na Etiópia, o rio Awash faz uma curva por cerca de 1.200 km através do coração do país, passando por matas e campos de trigo e por meninos cuidando de suas cabras ao sol. O terreno é acidentado aqui: muitas das colinas perto do rio chegam a 2.000 metros. À noite, grupos de babuínos dormem nas folhas das palmeiras para se esconder dos predadores. Em outras palavras, este é um lugar que parece tão diferente das terras baixas da Holanda quanto você pode imaginar.

No entanto, se você souber onde procurar, encontrará vestígios da Holanda em muitos lugares. Isso vale para as barragens e diques que revestem o Awash, mas também na forma como a hidrovia é administrada – desde os impostos até a representação. Tegenu Zerfu, um especialista em água da Etiópia, argumenta que isso não é nada surpreendente. “Garantir o futuro”, diz ele, “pode ​​ser obtido a partir do modelo de polder“.

Nem as terras altas da Etiópia são únicas neste sentido. Durante anos, os gestores hídricos holandeses levaram seu conhecimento a terras distantes, construindo relacionamentos com países do Peru ao Vietnã. Ao todo, o Dutch Blue Deal funciona em 14 países, e os conselhos de água individuais também têm suas próprias parcerias, algo que os profissionais envolvidos veem como uma consequência natural da tradição polderen.

Jo Caris, colega de Huisman no Conselho de Água de Zuiderzeeland e especialista em hidrovias da Etiópia, diz que apoiar o conselho de água vizinho e o distante Awash são, na verdade, dois lados da mesma moeda.

Esse apoio também pode ser descrito como uma troca, acrescenta ele, com países de baixa renda também ensinando coisas aos veteranos holandeses. Sturm afirma algo semelhante. “A necessidade desse programa”, explica ele, “realmente veio do entendimento de que, para nos adaptarmos às mudanças climáticas, precisamos aprender uns com os outros em todo o mundo”.

Como este último comentário indica, os holandeses têm o cuidado de não exportar seus métodos no atacado e tentam trazer lições valiosas para casa também. Mas, embora seja improvável que uma gemeenlandshuis brote em Adis Abeba tão cedo, os comitês de água deixaram sua marca na Etiópia.

Isso fica claro, por exemplo, quando se trata de como Zerfu e seus colegas reformaram a tributação ao longo do Awash. Até a chegada dos holandeses, há vários anos, as principais empresas industriais tinham poucos incentivos para economizar água, um sério desafio em um país onde apenas 42% das pessoas têm acesso a um abastecimento de água potável. Mas as coisas são diferentes agora: os agricultores pobres ao longo do Awash estão isentos do imposto sobre a água, enquanto os usuários maiores devem pagar sua parte.

Melhor ainda, Zerfu diz que, assim como o modelo holandês, este sistema é autofinanciável – crucial em um país onde há conflitos contínuos, abusos dos direitos humanos e pobreza (um quarto da população vivia abaixo da linha da pobreza em 2016).

homens apoiados em muro em Gana

Crédito, Blue Deal

Hoje, a experiência holandesa com água é usada em diferentes paisagens ao redor do mundo, incluindo em projetos da África

Você também pode ver reflexos dos sistemas holandeses na abordagem da representação na Etiópia.

Nada como uma eleição de conselhos de água existe ao longo do Awash: a democracia da nação é muito frágil. Mesmo assim, os holandeses e as autoridades locais encorajaram os pequenos agricultores a se juntar às associações locais de usuários de água, dando-lhes poder coletivo para negociar com o estado e a indústria.

Esquemas modestos como esse, diz Huisman, são típicos de como os holandeses operam no exterior. “Você tem que olhar para os princípios que estão em nosso modelo de governança – e adaptá-lo quando você o aplica a outros países.”

Isso vale também para países mais próximos da Holanda. Mirela Ciucur é a chefe de assuntos econômicos da Administração Nacional de Águas da Romênia. Como Tegenu Zerfu, ela viu a influência do modelo holandês em sua terra natal, especialmente quando se trata de boa governança.

Historicamente, os gastos dos impostos romenos sobre a água careciam de transparência, explica Ciucur. Inspirada na Holanda, Ciucur desenvolveu um modelo de análise econômica para entender exatamente o que precisava de dinheiro – de defesas contra enchentes à manutenção de praias. Além de ser mais transparente, esta abordagem incita a Romênia ao modelo de “recuperação de custos” tão bem-sucedido na Holanda.

Como na Etiópia, com certeza, as comparações não são exatas. Embora a Romênia já tenha 11 conselhos regionais de água, por exemplo, seus orçamentos são administrados centralmente a partir de Bucareste. Mesmo assim, Ciucur está finalmente convencida da necessidade de ir para o modelo holandês.

Quando as chuvas chegaram, uma polegada (2,5 cm) por hora na máxima força, a torrente era imparável. As pessoas tiveram que ser salvas em cerca de 900 vilas, e as enchentes vieram tão rápido que os soldados tiveram que salvar as pessoas em frágeis barcos de madeira, guiando mulheres idosas pela lama.

A descrição acima serviria para as inundações na Alemanha ou na Bélgica: aconteceram no verão, poucas semanas depois de Liège e seus vizinhos terem sido devastados, e mais de 100 pessoas morreram ali também. Mas, na verdade, esta última catástrofe aconteceu do outro lado do mundo em relação à Holanda, no Estado indiano de Maharashtra.

Esses desastres, iguais em causa, consequência e escala de tempo, mostram de maneira pungente a ameaça de enchentes em uma era de emergência climática. Em uma faixa da Europa Ocidental, os cientistas descobriram que as mudanças climáticas aumentam a quantidade de chuva que cai em um determinado dia em até 19%, o que aumenta drasticamente o risco de inundações.

Os pesquisadores sugeriram que as mudanças climáticas tornaram as recentes inundações na Alemanha nove vezes mais prováveis. Os cientistas chegaram a conclusões semelhantes sobre o subcontinente, observando que as mudanças climáticas estão ajudando a colocar 75% dos distritos indianos em risco de desastres climáticos, como inundações. E não apenas nessas duas áreas do mundo. Partes de Dakota do Sul, Nebraska e Novo México podem ter um aumento de cinco vezes na exposição a enchentes até 2100.

Em outras palavras, os problemas que recentemente afetaram a Bélgica e a Índia estão se tornando ameaças verdadeiramente globais. Isso naturalmente levanta a questão: o que deve ser feito? Claro, a resposta final é assustadoramente complexa, abrangendo desde energia verde até melhores leis de planejamento. Mas poderia o modelo holandês de gestão da água – com seus pilares de independência, transparência, colaboração e adaptabilidade às condições locais – oferecer lições mais amplas também?

Especialistas acreditam que sim. “Poderia funcionar muito bem”, argumenta Tracy Metz, “se essas organizações tivessem autonomia e influência suficientes para que o que decidissem realmente acontecesse”. Sturm concorda. A água, ela enfatiza, vai ter um “papel imenso” no mundo de amanhã. “Portanto, a necessidade de uma autoridade de recursos hídricos estar presente e ter o conhecimento certo, as instituições certas, o gerenciamento certo das partes interessadas é muito importante”.

Também há sinais de que até mesmo lugares sem vínculos diretos com o Blue Deal estão pensando em parâmetros holandeses. Na Virgínia (EUA), por exemplo, cidades vulneráveis ​​em todo o Estado estão cooperando para desenvolver um plano diretor costeiro unificado, incentivando o governo a tomar mais iniciativas financeiras após uma emergência. Enquanto isso, do outro lado do país, o Conselho Estadual de Controle de Recursos Hídricos da Califórnia está pensando em se conceder mais poderes, potencialmente obrigando as pessoas que controlam rios e riachos a compartilhar com a comunidade. Se eles puderem fazer isso sem recorrer a um ferrete, melhor.

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Fonte: BBC