Homem apontando em meio a escombros

Crédito, BBC / Claire Jude Press

Um civil ucraniano aponta para o local em Kiev onde russos destruíram sua casa

22 fevereiro 2023

Três dias após a invasão da Ucrânia pela Rússia, um enorme comboio de veículos blindados de 15,5 km foi detectado por satélite. Na mesma manhã, em Bucha, ao norte de Kiev, Volodymyr Scherbynyn, de 67 anos, estava do lado de fora do supermercado perto de sua casa quando mais de cem veículos militares russos chegaram à cidade.

Tanto Volodymyr quanto o satélite foram testemunhas do início do plano do presidente Vladimir Putin para tomar a capital da Ucrânia e depôr o governo. Um ataque de decapitação, no jargão militar.

Quarenta e oito horas depois, em 29 de fevereiro de 2022, o comboio havia crescido para 56 km de comprimento. Mas, em vez de obter uma vitória rápida, ele ficou parado por semanas. E depois desapareceu no meio da noite.

O que aconteceu? E por que uma força tão grande não conseguiu chegar a Kiev?

Uma equipe da BBC falou com dezenas de testemunhas; incluindo militares, serviços de inteligência nacionais e internacionais, civis, veteranos e defesa territorial — todos que tiveram algum contato com o comboio. Também obteve acesso a mapas e documentos russos que expõem o plano do comboio e por que ele falhou de forma tão espetacular.

Essa história começa na fronteira da Ucrânia com Belarus, no norte.

Saindo para fumar o primeiro cigarro do dia, Vladyslav, de 23 anos, da 80ª Brigada de Assalto Aéreo da Ucrânia, viu uma rajada de luzes brilhantes no céu noturno.

“Lembro de ver as luzes surgindo em toda a floresta. A princípio pensei que fossem faróis de carros. Mas então percebi que eram Grads [mísseis autopropulsados]. Eles estavam atirando em nós.”

Acampado nas profundezas da floresta da zona de exclusão de Chernobyl, a unidade de Vladyslav estava em patrulha quando os primeiros veículos russos cruzaram para a Ucrânia.

“Toda a terra estava tremendo. Você já esteve em um tanque? Não há outro som como esse. É uma coisa poderosa.”

Conforme planejado no caso de qualquer ataque, Vladyslav e o resto da 80ª brigada explodiram a ponte que ligava Chernobyl à próxima cidade grande, Ivankiv.

Os russos seriam forçados a perder tempo construindo uma ponte flutuante, dando a Vladyslav e sua unidade tempo para recuar até Kiev.

“No começo, fiquei surpreso: por que não os seguramos lá em Chernobyl? Mas precisávamos aprender sobre nosso inimigo. Então foi isso que fizemos.”

Tão próximos da fronteira com Belarus, os ucranianos não podiam abrir fogo. Eles corriam o risco de iniciar outro conflito. Sua prioridade era primeiro entender o plano de batalha da Rússia, antes de enviar suas tropas para a linha de fogo.

O plano de Putin

Ao contrário de muitos relatos da imprensa na época, a coluna de 56 km era na verdade dez unidades de batalhão tático russo separadas, de acordo com as Forças Armadas ucranianas.

Um documento russo, visto pela BBC, mostra um cronograma para o ataque. Depois que o primeiro batalhão cruzou para a Ucrânia às 4h do dia 24 de fevereiro, suas ordens eram para avançar direto para Kiev, chegando às 14h55.

O ataque dependia de duas coisas — sigilo e velocidade.

De acordo com o Royal United Services Institute (RUSI), ao manter os planos sobre um ataque à capital em segredo, os soldados russos seriam capazes de superar as forças ucranianas em uma proporção de 12 para 1 no norte de Kiev.

No entanto, o sigilo de Putin teve um custo. Seu plano de enganar os inimigos foi tão bem-sucedido que até mesmo a maioria de seus comandantes não recebeu suas ordens até 24 horas antes da invasão.

Em um nível tático, isso os deixou vulneráveis. Eles não tinham comida, combustível e mapas. Eles estavam sem ferramentas de comunicação adequadas. Eles tinham pouca munição. Eles próprios estavam mal preparados para o inverno.

Equipados com os pneus errados e cercados pela neve, os russos se meteram em um banho de lama. Civis próximos a Ivankiv dizem que soldados russos pediram aos fazendeiros ucranianos para ajudar a retirar seus tanques da lama.

Os veículos russos precisavam usar estradas pavimentadas para evitar o solo macio, forçando milhares a se agruparem em uma única coluna.

Mas com comunicação limitada entre os batalhões, eles quase imediatamente começaram a convergir para um engarrafamento.

Como disse um especialista militar: “Você nunca viaja para um território hostil em um longo comboio. Nunca.”

Com base em depoimentos de testemunhas e inteligência dos militares ucranianos, conseguimos mapear o terreno percorrido pelo comboio entre 24 de fevereiro e o final de março. Sem poder viajar pelos campos, o comboio acabou preso nas estradas principais ao norte de Kiev.

Quando a coluna cresceu para 56 quilômetros, ela já incluía mil tanques, 2,4 mil veículos de infantaria mecanizados e 10 mil militares, além de dezenas de caminhões de abastecimento que transportavam alimentos, combustível, óleo e munição.

Mapa do comboio russo

Frente de resistência

Paralisados ao norte de Kiev e sem comida e combustível, os russos também subestimaram seu adversário.

Por três dias, Volodymyr Scherbynyn e seus companheiros voluntários, a maioria deles aposentados, se prepararam para a chegada do comboio em sua cidade natal, Bucha.

Armados com apenas uma metralhadora, 12 moradores locais derrubaram todos os sinais de trânsito, construíram postos de controle e prepararam centenas de coquetéis molotov.

Até que finalmente, na manhã de domingo, os tanques russos invadiram a cidade.

Por quase trinta minutos, Volodymr e sua unidade de base atacaram os tanques com o pouco que tinham.

“Incendiamos dois dos veículos e reduzimos a velocidade de todo o comboio”, diz Volodymyr.

Mas então veio a retaliação.

“Quando eles nos viram jogando garrafas, eles abriram fogo”, disse Maksym Shkoropar, de 30 anos. “Eu era barman. Não tive nenhum treinamento militar.”

Ao final daquela meia hora, todos os membros do grupo de Volodymyr haviam sido baleados e levados para o hospital.

Mas mesmo da enfermaria, Volodymr continuou lutando. Ele compilava e verificava as informações de civis ao redor de Kiev e comunicava tudo para as autoridades ucranianas.

Quem recebia essas informações era o vice-governador local de Irpin, Roman Pohorilyl, de apenas 23 anos.

“Ficamos três dias sem dormir. Meu colega e eu estávamos na linha direta do escritório do conselho.

Atendendo a ligações sobre a coluna, bem como sabotadores — pessoas que estavam pintando marcas no chão para o comboio seguir.”

Conselheiro durante o dia, Roman também é um especialista em inteligência de código aberto à noite. Cofundador do conceituado site DeepState, ele reúne relatórios de mídia social e inteligência, localiza-os geograficamente e os republica em seu site.

“A caminho de Kiev, os russos estavam postando vídeos nas redes sociais. Nós repostamos os vídeos para expor seus movimentos. Eles estavam apenas se exibindo, mas ao fazer isso, foram presos.”

Mas o mais importante durante o ataque a Kiev, diz Roman, foi a sensação de uma Ucrânia unida.

“Todo mundo estava fazendo alguma coisa. Admito que foi muito agitado naqueles primeiros dias. Mas havia veteranos ajudando civis. Todos queriam defender sua cidade.”

Em cidades e vilas em toda a região de Kiev, centenas de ataques ocorreram contra o comboio. De civis armados com armas caseiras a infantaria e artilharia mecanizada.

Táticas ultrapassadas

Em total contraste com os ucranianos, as forças russas expuseram sua incapacidade de tomar decisões dinâmicas.

“Todos os russos carregavam grandes caixas de metal marcadas como ‘secreto'”, disse Vladyslav da 80ª Brigada. “Pegamos uma delas durante uma emboscada. Encontramos seus mapas marcados com toda a rota. Depois disso, ficamos sabendo de toda a sua estratégia.”

O sigilo de Putin significava que os comandantes russos não tinham noção do plano de batalha mais amplo.

Suas ferramentas de navegação também estavam desatualizadas. Um ano desde a invasão, a BBC continua encontrando mapas deixados pelas tropas russas que datam dos anos 1960 e 1970. Cidades inteiras existem agora que não estavam naqueles mapas. Também encontramos sinalizadores de semáforo, uma maneira muito desatualizada de se comunicar entre as unidades.

Uma tática bem-sucedida da resistência ucraniana foi explodir pontes e represas à frente do comboio, forçando assim os russos a redirecionar a investida.

Dependentes de mapas antigos e com comunicações limitadas com seu alto comando, as unidades russas frequentemente não agiam por pura indecisão.

Várias imagens de satélite mostram os veículos russos literalmente rodando em círculos.

Imagem aérea mostra longo comboio russo em estrada na Ucrânia

Crédito, Maxar

Imagem aérea mostra longo comboio russo em estrada na Ucrânia

Ocupação

Sob pressão dos ataques aéreos e da artilharia ucraniana, o comboio russo foi finalmente barrado fora dos limites da cidade de Kiev. Para milhares de civis que viviam perto das tropas estagnadas, a experiência foi terrível.

“Eles roubaram tudo de todos os lugares. Eles esvaziaram as lojas”, diz Vladyslav. “Eles também usaram civis como escudos humanos.”

O que aconteceu em muitas aldeias e cidades ao norte e oeste de Kiev ainda está sendo investigado por várias autoridades, incluindo o Tribunal Penal Internacional, em busca de evidências de crimes de guerra.

“Enquanto eu estava em um posto de controle, por trás das filas de pessoas, eles [forças russas] começaram a atirar em nós. Os civis foram pegos no meio de uma batalha. Foi horrível”, disse Vladyslav.

Depois de quatro longas semanas, os russos finalmente começaram a se retirar.

Dois dos maiores batalhões restantes foram derrotados perto do aeroporto de Hostomel. Outros 370 caminhões do exército, aparentemente abandonados na vila de Zdvizhivka, foram destruídos pela artilharia.

Os militares ucranianos continuaram a empurrá-los, após o que os russos se retiraram totalmente do Oblast de Kiev em 19 de março.

Apesar da especulação de um novo ataque a Kiev, a maioria dos especialistas concorda que isso é improvável, pois não houve deslocamento em larga escala de tropas russas para a fronteira com Belarus.

A Rússia continua avançando no coração industrial oriental de Donbass e atacando no Sul, na direção das regiões de Kherson, Melitopl e Zaporizhzhya.

Mas no Norte, ainda observando por meio de drones de reconhecimento perto da fronteira, estão os soldados ucranianos.

“Sempre me lembrarei daquela noite em Chernobyl”, diz Vladyslav. “Quando saí para fumar com meu amigo. E quando terminei meu cigarro, a guerra havia começado.”

“Meu amigo e eu temos um sonho, que estaremos em um turno, como naquele dia, e enquanto fumamos outro cigarro ouviremos que a guerra acabou. E que nós vencemos.”

Fonte: BBC