De todas as coisas que aprendi na vida de homem negro que sou, a ancestralidade é a que mais me toca com profundidade. Em minha família a lembrança mais ancestral de que me recordo foi de meu avô paterno, com quem tive pouco contato, por problemas familiares como separações e outras coisas que não vale a pena narrar, mas lembro de minha mãe falando: dê a bênção a seu avô, assim como também aprendi a pedir a bênção para ela e os familiares mais velhos. Um sinal de muito respeito com aqueles que vieram primeiro, responsáveis maiores por tudo que desfrutamos.

Não tive a oportunidade de conhecer o rei Pelé, o senhor que morreu aos de 82 semana passada. Com certeza se o tivesse conhecido, hoje na condição de avô que sou invocaria esse sentimento ancestral para pedir à minha neta Helena que pedisse a bênção para ele, foi este sinal de respeito com os mais velhos que aprendi e era assim que as famílias negras secularmente
reverenciavam seus mais anciões em um passado não muito distante.

Na contramão dos milhares de jornalistas mundo afora, que reverenciaram o genial Pelé quero focar aqui no Edson, aquele menino de família humilde, nascido algumas décadas depois do final da escravidão e que ascendeu em uma época que nos Estados Unidos a Ku Klux Klan assassinava negros em praças públicas, e o Brasil se revezava, ora ditadura, ora democracia e em ambos os países se criava as bases do mais perverso sistema de exclusão negra contemporâneo, o racismo estrutural.

Foi neste ambiente, lutando contra o nefasto futuro que esse sistema reservava para negras e negros daquela e de nossa época, que cresceu o Edson. Não sei quantas negociações o negro Edson foi obrigado a fazer para dar luz ao Pelé, não sei o quanto de pessoas ele magoou para que o Pelé sobrevivesse.

Sei de algumas mágoas que o Edson carregava nas poucas entrevistas em que não falava em nome do Pelé e sim do homem negro com problemas típicos de quem não foi talhado para reinar no mundo branco. Lembro-me, por exemplo, de uma dessas raras entrevistas onde o Edson dizia o quanto foi roubado em empresas e negócios em que se meteu, onde não preciso dizer a cor e a origem de seus sócios.

Outras coisas nem precisou o Edson falar, é simples deduzir: em um mundo que explora mão de obra negra desde sempre, seja pelo racismo ou seus tentáculos, como a má formação educacional, a falta de instrução e experiência com negócios, afinal o Edson era filho do seu Dondinho e não de um rico comerciante ou banqueiro ou seja uma presa fácil para os parasitas de plantão,
que fazem isso desde o período escravocrata e com o Edson não seria diferente.

O preço deve ter sido caro, mas Edson conseguiu gestar uma das maiores criaturas da recente história da humanidade: o genial Pelé.

Obviamente tentaram aniquilar a lenda negra que se firmava em tempos difíceis. Primeiro quiseram tirar-lhe a cor, mas isso foi impossível; tentaram tirar-lhe a majestade o comparando primeiro com um alemão, depois um argentino, até um português, mas também não deu certo.

Tentaram também lhe tirar a importância e a contribuição com seus irmãos negros, por ele não ter levantado bandeiras, mas, como assim, se aquele homem negro reinando em um mundo branco foi a própria bandeira?

O último gesto do Edson pouco comentado pela imprensa, ainda no seu leito de morte, foi pedir para que os netos de uma filha com quem ele não conseguiu se resolver em vida viessem abraçá-lo e receber sua bênção. Dos filhos de Sandra, saiu a mais sincera homenagem que o rei do futebol recebeu nos seus últimos dias na terra, que foi a frase: “Muito difícil tudo isso, mas eu acredito
que a gente conseguiu finalizar perdoando. Esse é o legado que tem de ser deixado: O perdão e amor vencem todas as coisas”, disse Otávio, neto de Pelé, filho de Sandra, na Vila Belmiro.

*Este texto não representa, necessariamente, a opinião da CNN Brasil

Fonte: CNN Brasil