Em Puntarenas, na Costa Rica, boa parte da população depende da pesca para sobreviver. — Foto: Marcos González via BBC

Vanessa Vadillo diz com um sorriso largo que o sonho de sua filha de 6 anos é conhecer Paris.

A jovem conta isso sob uma chuva torrencial na entrada da precária casa que construiu com as próprias mãos em Tárcoles, um povoado na costa do Pacífico da Costa Rica, a região mais pobre do país.

No momento, contudo, sua preocupação não é a capital da França, mas as cobras venenosas “de até dois metros” que ela tem de matar dentro de casa para evitar que ataquem suas duas filhas. Ou que um dos automóveis que passam em alta velocidade se envolvam em um acidente e se choquem contra a casa, erguida quase na beira da estrada.

A forte chuva, comum nesta área durante grande parte do ano, encharcou o terreno de lama. No último temporal, o aguaceiro invadiu a casa — “isso virou um rio”, lembra ela — e fez com que a filha pegasse um resfriado, mas Vanessa diz que não tem dinheiro para levá-la ao médico.

“Por isso digo a ela que estude bastante para realizar seu sonho de viajar”, ​​diz a moça, que sequer colocou os pés na capital do país, San José.

Sem condições de arcar com um aluguel, Vanessa Vadillo decidiu construir uma casa improvisada na beira da estrada. — Foto: Marcos González via BBC

Para Vanessa, também é remota a imagem que muitos turistas têm de uma Costa Rica de grandes hotéis, parques naturais e praias idílicas.

Ainda assim, a poucos quilômetros de sua casa humilde é possível avistar luxuosos resorts e píeres cheios de iates que atraem milhares de visitantes estrangeiros.

Além dos índices

A Costa Rica é o único país centro-americano membro da OCDE e tem, na região, alguns dos menores indicadores de pobreza extrema, além de uma alta taxa de alfabetização.

É o segundo país da América Central em renda per capita, atrás do Panamá, e o “mais feliz” de toda a América Latina, de acordo com o Relatório Mundial da Felicidade de 2021. A desigualdade social, entretanto, está presente, ainda que de forma latente, muitas vezes.

E os grandes contrastes se manifestam sobretudo na província mais pobre, Puntarenas, localizada no oeste do país, na costa do Pacífico.

A região sofre com altas taxas de desemprego, um problema acompanhado em alguns municípios pelo tráfico de drogas, pela prostituição e pelo aumento da criminalidade.

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As autoridades atribuem a maior parte dos homicídios aos acertos de contas entre gangues rivais que querem controlar novos territórios para vender drogas — 90% da cocaína que entra no país passa pelo corredor do Pacífico. A falta de oportunidades fez com que muitos pescadores da província se envolvessem em grupos criminosos.

As duas sub-regiões que compõem Puntarenas, Brunca e o Pacífico Central, foram as mais atingidas pela pobreza em 2019. A última registrou os piores resultados do país em 2020, sob os efeitos da pandemia de covid-19.

“A pobreza gera a exclusão que culmina em violência e em condições totalmente inadequadas para permitir o desenvolvimento das pessoas (…). A realidade de Puntarenas dói”, afirma a vice-presidente da Costa Rica, Epsy Campbell.

“O maior desafio é reduzir esse abismo. Não é aceitável que tenhamos algumas pessoas vivendo em uma Costa Rica que é totalmente diferente para outras. E Puntarenas é talvez o desafio mais importante que temos como país”, disse à BBC News Mundo, serviço em língua espanhola da BBC.

Pobreza e luxo

Nas proximidades de Tárcoles há vários complexos residenciais turísticos. — Foto: Marcos González via BBC

Em paralelo à realidade de privações de muitos costarriquenhos, Puntarenas concentra importantes atrativos turísticos, como o Parque Nacional Manuel Antonio ou as praias da Península de Nicoya.

A poucos quilômetros da casa de Vanessa Vadillo, chamam a atenção os cartazes anunciando empreendimentos de luxo em áreas da estrada próximas aos locais onde pescadores tentam vender a mercadoria do dia sem refrigeração adequada.

Menos de 20 quilômetros ao sul, ainda na região do Pacífico Central, vê-se, por exemplo, um imponente resort à beira-mar com luxuosas vilas na praia de Herradura.

Entre suas ruas repletas de fontes e um gramado perfeitamente aparado, ouve-se muito inglês entre os inquilinos, a maioria americanos. Alguns deles jogam no campo de golfe e outros passeiam pelo cais privativo, onde estão enfileirados dezenas de iates e barcos de pesca esportiva.

“É triste que em um espaço tão curto você possa ver esses navios de dois ou mesmo cinco milhões de dólares e pessoas que não têm o suficiente para sustentar a família”, disse à reportagem um dos seguranças da marina, natural de Puntarenas.

“Se essas pessoas tivessem pelo menos um bote para pescar, que as coisas fossem mais iguais… Mas, infelizmente, é a vida. Alguns vão dizer que é mal distribuído, mas nos beneficia que essas pessoas venham investir aqui, porque nos dá trabalho “, completa.

O futuro dos pescadores

De volta a Tárcoles, um grupo de moradores conversa na praia enquanto se protege do sol embaixo de um pequeno quiosque de palha.

A maioria são pescadores, que dizem estar esperando para ver se os colegas tiveram sorte no mar antes de decidir se o tentarão também mais tarde.

O grupo tem uma visão bastante pessimista do futuro. Dizem que 85% do município se dedica à pesca, apesar de muitos não possuírem licença formal para fazê-lo, e do fato de que, em alguns períodos do ano, a atividade seja proibida por conta do defeso, que tem o objetivo de garantir a regeneração da espécie.

“Aqui não tem opção. A fonte de trabalho mais próxima são os hotéis da praia de Herradura ou de Jacó. Então, as crianças de 13 ou 14 anos da cidade já são pescadoras”, diz Antonio Quesada, que se dedica à pesca e à construção civil.

“Muita gente em Tárcoles tem que ir embora. Isso é difícil. Já pensei nisso, mas não quero deixar a família aqui”, afirma o jovem de 27 anos.

Os moradores dizem que na cidade também há “forasteiros ricos” que vivem isolados em condomínios e mansões que podem ser vistas da costa, mas que não sabem quem são nem deixam dinheiro no município. “Nem para construir contratam gente da cidade”, criticam.

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À margem do turismo

Durante a conversa na praia, um grupo de turistas americanos desceu de um pequeno ônibus não muito longe dali. Tiram fotos das lapas (araras coloridas) e vão embora depois de alguns minutos.

A única outra atração turística em Tárcoles são os passeios para ver os crocodilos que habitam o rio de mesmo nome. No passado, alguns moradores ofereciam aos turistas que alimentassem os animais com frango, atirado de cima de uma ponte, mas a atividade foi proibida.

Os moradores reclamam que as atividades turísticas beneficiam poucos na cidade.

“Quanta gente pobre não se beneficiaria se nos autorizassem a colocar barracas de coco e frutas para os turistas? Mas o município não deixa”, critica Emilio Chávez, também pescador, que passou a criar os três filhos sozinho após a morte da esposa, que na época tinha apenas 27 anos.

Aos 54, já com netos, ele mora em uma minúscula construção de madeira e zinco perto da praia, para onde se mudou depois que um temporal levou embora sua antiga casa. Hoje, Chávez teme ter de se mudar mais uma vez, caso uma lei que restringe construções perto da praia possa lhe causar problemas.

“Não temos alternativa. Nossa única opção é pescar e vender o que pegamos. Não há futuro além disso, as oportunidades estão em Jacó e em outras áreas”, ressalta Quesada.

O prefeito do cantão de Garabito (as províncias da Costa Rica estão subdivididas em cantões), porém, nega que Tárcoles seja alijada da administração e afirma que os moradores não querem aproveitar oportunidades de trabalho que reduziriam sua dependência da pesca.

À BBC News Mundo, Tobías Murillo diz que foram oferecidos à população cursos de treinamento para se trabalhar com artesanato e produtos feitos a partir da manga, fruta comum no país, mas pouca gente compareceu.

“É feio dizer, mas há muitas pessoas nesta região que não gostam de trabalhar, que são menos responsáveis ​​porque estão acostumadas que as autoridades lhes deem tudo”, diz o prefeito, que define Tárcoles como “uma cidade conturbada, com pouca iniciativa”.

Murillo comenta sobre um projeto de construção de um grande mercado de frutos do mar para que os pescadores possam vender seus produtos em condições mais higiênicas e diz estar empenhado em tornar a educação nas escolas mais voltada para a realidade da região.

“O turismo é 85% da atividade econômica de Garabito. É preciso capacitar a população para isso, ensinar inglês, formar chefs, assistentes de cozinha, guias… O que estamos fazendo aqui ensinando aos jovens coisas que não têm a ver com isso?”, questiona.

A chave para a educação

Na escola Tárcoles, alguns dos funcionários reconhecem que a situação de vulnerabilidade de muitas famílias e a baixa escolaridade de alguns pais tornam o ensino mais difícil.

Também são um obstáculo as deficiências de infraestrutura, de problemas no telhado às questões de conectividade, que impediu que os professores dessem aulas remotas durante a pandemia. Nesse último caso, os pais recolheram as tarefas impressas e ajudaram as crianças a fazê-las em casa.

Não ter concluído o ensino fundamental é um dos principais obstáculos que Vanessa Vadillo encontra para conseguir emprego. Segundo ela, é difícil conciliar o estudo com a criação das filhas – a alternativa para sobreviver é vender na beira da estrada as galinhas que cria.

Seu marido foi demitido durante a pandemia, mas acaba de conseguir um emprego temporário na cozinha de restaurante, com o qual espera conseguir os 60 mil e 70 mil colones (algo entre US$ 96 e US$ 112, ou de R$ 520 a R$ 610) que estima precisar por mês para conseguir alimentar, “fazendo milagres”, os quatro membros da família e para pagar as contas de água e luz e as fraldas para a filha menor.

Até recentemente, Vanessa recebia um benefício mensal de US$ 120 do Instituto Mixto de Ayuda Social (IMAS), instituição autônoma ligada ao governo federal da Costa Rica. “Eles me consideravam um caso de extrema pobreza. Quando a mulher veio aqui fazer a avaliação, uma cobra passou por cima do pé dela. Três dias depois, o dinheiro tinha sido liberado”, lembra, rindo. O auxílio, entretanto, foi cortado recentemente.

A diretora da regional do IMAS em Puntarenas, Denia Murillo, explica que a conclusão da sexta série é um dos requisitos da carta de compromisso assinada pelas famílias beneficiárias para que continuem recebendo as transferências monetárias.

“Esta é uma das áreas com maior gasto social do país. Ainda assim, é difícil enfrentar a questão da falta de emprego, por isso nossa atuação não está focada em algumas áreas, mas em toda Puntarenas. É como um paciente crônico.”

O desemprego, diz Murillo, fez com que a fila de pedidos de subsídio disparasse nos últimos meses. Hoje, cerca de 2 mil pessoas seguem na lista de espera.

‘Há esperança’

Em relação à situação dos pescadores, a diretora do IMAS descarta que a concessão indiscriminada de licenças de pesca seja uma solução, já que a capacidade do mar é limitada. E afirma que as raízes pesqueiras da região já levaram muitos dos moradores a rejeitar propostas para que pudessem se dedicar a outras áreas de atuação.

“Muitos não têm o ensino fundamental ou não sabem ler ou escrever. Enquanto isso não mudar, eles não terão a oportunidade de fazer mais nada. O nível médio de escolaridade nessa área é chegar à sexta série, e isso me preocupa.”

“Sim, há esperança. Mas devemos incentivar as pessoas a saberem que há várias instituições dispostas a estender a mão, mas elas precisam levantar da cadeira, não se acostumarem com o assistencialismo. Caso contrário, não sairão de onde estão”, acrescenta.

Da porta de casa, na chuva, Vanessa Vadillo diz ser otimista de que um dia poderá tirar a família de lá porque “não é bom ter duas meninas aqui”.

“Se você não sabe pescar, vai passar fome aqui em Tárcoles. Seria bom se fizessem algo para apoiar as mulheres. Talvez muitas de nós não tenhamos estudo, mas queremos progredir”, ela destaca.

Antes de nos despedirmos, um homem vem buscar o pagamento pelas cadeiras onde estamos sentados, que a família teve que comprar parceladas dias atrás.

“Volte na próxima semana para ver se eu posso pagar você”, diz a jovem, sem perder a esperança de que sua situação melhore e que sua filha possa um dia possa visitar Paris.

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Fonte: G1