Um amigo, chef de cozinha, pediu indicações de onde comer em Jericoacoara. Ele, assim como centenas de milhares de paulistanos, vai passar o feriadão da Semana Santa em viagem.

O pedido foi feito em um post público no Facebook. Eu indiquei um lugar bastante peculiar, que visitei numa das vezes em que fui para o Ceará.

Trata-se de um boteco beeeem simples, daqueles que vendem salgadinho Torcida e água sanitária. Para quem não conhece Jeri: a vila não tem ruas pavimentadas. As mesas de plástico do Peixe Brasileiro, cedidas por marcas de cerveja, ficam espalhadas no lado de fora, no chão de areia.

Num pequeno anexo do bar, há uma churrasqueira e uma enorme caixa de isopor. O cliente é conduzido à “cozinha” para escolher o jantar, que vem a ser a pesca do dia. Pargo, vermelho, o peixe que tiver. Se estiver na época certa e der alguma sorte, tem lagosta ou camarão.

O pescado é grelhado sem grande maestria e servido com pouco tempero. Para acompanhar, arroz, feijão, farofa e vinagrete. Você come em pratos de refratário transparente, usa talheres com cabo de plástico e harmoniza com cerveja em litro ou caipirinha de caninha barata.

Como venta muito em Jeri, acaba voando parte da comida: espinhas de peixe, pequenos nacos de carne, farinha, arroz. Uma cambada de gatos esquálidos e pulguentos se reúne sob a mesa para banquetear as sobras.

Enquanto decorre o jantar, o dono do estabelecimento acompanha o telejornal e a novela de uma rede estendida no meio do boteco.

A apoteose vem na hora da conta –mais cara do que a expectativa do turista. Quem não tem dinheiro vivo na carteira é instado a ter a gentil companhia de um pescador de volta à pousada, onde pega a grana e acerta a fatura.

Achou tosco demais? Para mim, tosca é a destruição das tradições regionais perpetradas pelas hordas de turistas paulistanos.

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Recomendei o Peixe Brasileiro não porque a comida seja excepcional. Foi porque o lugar é a última reminiscência da Jeri que eu conheci há exatos 30 anos.

Era 1989 e eu havia ido a Fortaleza com colegas de faculdade para um congresso da SPBC. A sigla significa Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. A imprensa local deu outro sentido às letras: Semana Brasileira de Paulistas no Ceará. A garotada só queria sol, cerveja e maconha. Olavo de Carvalho que não me leia.

Minha turma da USP resolveu esticar para Jericoacoara, então uma praia remota que, sabe-se lá por que, havia caído nas graças de algum jornalista americano.

A viagem noturna de 8 horas era feita por estradas vicinais em ônibus que vendia passagens em pé. Em Jijoca, ponto final do busão, fretávamos um jipe sem capota que levava uma penca de 20 passageiros através das dunas até a vila.

Jeri não tinha água encanada nem luz elétrica. Vimos algum político graúdo chegar de helicóptero para inaugurar o primeiro telefone público do lugarejo. As pousadas ofereciam redes para você dormir.

Peixe com farinha era o que havia para comer.

Mentira.

Jeri já havia sido descoberta por paulistas, cariocas, gaúchos, italianos, argentinos e outros estrangeiros. A transformação já estava começando –nós que não percebíamos. Tinha um bar que servia sanduíche natural de beterraba com ovo. O italiano que fazia a própria massa fresca à carbonara. Surreal para aqueles tempos e para garotos que começavam a viajar sem os pais.

Desde então, fui mais umas sete vezes ao Ceará. Assisti a tudo.

Jericoacoara ganhou luz, água, telefone, ar-condicionado, piscinas, paulistas, mais estrangeiros, pousadas confortáveis, televisão, celular, lan house, paulistas, transporte em 4×4 climatizada, turismo de kitesurf, paulistas, internet 3G, estrada asfaltada até Jijoca, paulistas, pousadas de luxo, aeroporto internacional, paulistas, festas de celebridades, paulistas.

Hoje Jeri é destino das Marquezines e das Ewbanks do Brasil.

E a comida, como mudou. Ganhou salmão, molho de maracujá, pimenta rosa, crepes, nutella, pizza de massa fina, tapioca gourmet, açaí na tigela, quinoa, macarrão de trigo duro, chutney disso e daquilo, aperol spritz, catupiri, cerveja artesanal, risoto, azeite trufado, sushi de salmão com cream cheese.

Turistas paulistas completaram sua obra ao levar para Jeri o cardápio que eles têm todo dia em São Paulo. Para lá e para todas as praias do Brasil.

Eu fico com o peixe e a farinha, ainda que não seja grande coisa, em homenagem à Jeri que a gente pôs abaixo.

Fonte: Folha de S.Paulo