Sentindo falta de viajar? Se até ir à farmácia virou aventura excepcional, não é de estranhar que pessoas afeitas ao turismo sintam este estranho vazio de movimento.

Enquanto o vírus estiver à espreita e nós indefesos, o sensato é ficar em casa. E pensar na viagem como um projeto agora ambicioso, para futuro incerto. Até lá, alimentar-se de planos e sonhos.
Ou de recordações. Verdade que álbuns de viagem andam em desuso e, de toda maneira, ver velhas fotos pode ser um passatempo melancólico.

Mas descobri um esporte diferente: encontrar vestígios de viagens que, além de palpáveis, continuaram parte de nossa vida, até do nosso cotidiano.

O jogo consiste em percorrer nosso cárcere atual (jeito feio de chamar a própria casa, não?) encontrando objetos trazidos de viagens, procurando recuperar os momentos em que os descobrimos.

Talvez não seja tão excitante para quem viaja muito e compra muito. Mas pode ser divertido para quem viaja pouco ou gente como eu, que viajo (ou viajava) muitas vezes a trabalho, mas tenho enorme preguiça, quase aversão, a me jogar nas compras –então cada coisa que eu eventualmente traga tem um motivo forte para ter se esgueirado mala adentro.

É um jogo pra se jogar sozinho, e eu não pretendia incomodar ninguém com minhas pífias lembranças, mas me permito começar, mais para mostrar como funciona.

Então, primeiro eu.

Vou pular os livros, que esses são aos montes. Vou antes para a entrada de casa onde avisto, repousando, um par de sapatos espanhóis Camper. Tem design ligeiramente atrevido, couro ultramacio e levíssimo, um bálsamo para quem prefere estar descalço.

Este eu lembro direitinho onde comprei, porque é meu único sapato azul. Foi em Lisboa, numa viagem de jornalistas. Quando disse à minha anfitriã (cuja identidade protegerei, pelo que vem a seguir) que escaparia rapidamente até a loja, ela se ofereceu para me fazer companhia, embora (explicou-me) não tivesse o que fazer lá, já que acabara de comprar dois sapatos.

Porém, enquanto eu me desincumbia de minha tarefa (apenas hesitando quanto à cor), ela se pôs a provar vários modelos, só por olhar… E saiu de lá com mais dois pares na sacola. Terá toda mulher sua porção Imelda Marcos?

Falando em loucura, passando pela cozinha constatei a minha própria nos potes intocados de tempero indonésio, com prazo de validade já ilegível. À época não resisti, pelos sabores que neles intuía, e até pelas embalagens. Estúpida compra por impulso –viraram decoração. Já a bomba manual de vácuo trazida de Tóquio, onde foi parar mesmo?

Em compensação, vejo ao lado uma relíquia inestimável e de durabilidade próxima do eterno: um pequeno frasco com velho vinagre balsâmico de verdade. Não o comprei: foi-me presenteado pelo chef italiano Massimo Bottura, do Osteria Francescana, numa visita que fiz a Modena. A amostra saiu de uma garrafa de sua avó. “Tem 90 anos” (o vinagre), disse –provei numa colherinha de café: um caramelo com gosto de fruta, de açúcar, e uma chispa de sóbria acidez.

Tampouco comprei a garrafa de Malbec Catena Zapata 2004 que me presenteou o chef Francis Mallmann numa entrevista em Buenos Aires. “Recebeu cem pontos do crítico Robert Parker”, ele contou. Já se vão uns dez anos, e ainda não bebi: há de melhorar ainda mais.

Na sala, vislumbro negras estátuas de um casal africano de longos pescoços estilo Naomi Campbell, que comprei numa beira de estrada na África do Sul. É tão raro trazer este tipo de lembrança… mas não sei, a primeira viagem à África (fora o Magrebe) deve ter me motivado.

No banheiro, toalhas de algodão trazidas da Turquia –foi em minha segunda viagem, que me convenceu do quanto é preciso voltar mais. No quarto, um duvet (aquele lençol recheado, de hotel…) que me conforta toda noite e que tive a pachorra de trazer de… Portugal! De uma Ikea, a megaloja sueca com a qual me deparei nas cercanias da cidade do Porto. Precisava renovar a roupa de cama, achei o preço tão mais barato do que no Brasil…

Espera aí, trazer edredon no avião, de Portugal? É, não sou de fazer compras em viagens, mas quando faço… ora, direis, perdi o senso.

Fonte: Folha de S.Paulo