No filme “Encontros e desencontros”, de Sofia Coppola, Scarlett Johansson está com sono, mas não consegue dormir. Ela passa um tempão na janela de seu hotel em Tóquio. Do alto, a cidade é um emaranhado incompreensível de arranha-céus e concreto. Na hora em que ela e Bill Murray descem às ruas, porém, ela muda de astral e o filme muda de cor. Iluminadas pelos espalhafatosos letreiros de neon, as pessoas andam e riem nas calçadas, bebem e cantam nos karaokês, jogam vídeo game e dançam nos fliperamas.

A oposição entre os prédios gigantescos e a animação no nível da rua se multiplica em muitos outros contrastes: entre a multidão amorfa e os gestos de cortesia individual; entre o PIB trilionário e a delicadeza humilde de uma lojinha familiar; entre os viadutos extensos e as acolhedoras ruazinhas compartilhadas; entre os executivos de terno e as meninas de peruca rosa; entre a paz do parque Shinjuku e a muvuca do cruzamento de Shibuya; entre a tecnologia dos robôs que conversam com turistas no aeroporto e a simplicidade dos ryokan, aquelas pousadinhas tradicionais, com paredes de papel e madeira, tatame no chão e quase sem móveis.

Parte desses contrastes se explica pela história. Tóquio não é uma cidade, é uma região metropolitana. São 23 ajuntamentos que foram se amalgamando e produziram a maior aglomeração humana do mundo, com quase 40 milhões de pessoas. Ao contrário de cidades planejadas, Tóquio nunca teve um daqueles master plans que ditam o futuro, como Paris, por exemplo. O crescimento se deu de maneira mais orgânica, destruindo e reconstruindo, preservando e renovando. O processo, que o historiador inglês Ben Wilson chamou de “metamorfose incansável” resulta numa trama urbana originalíssima: circundada por grandes avenidas, uma malha de ruas estreitas mistura comércio, habitação e muita vida local.

É incrível que todo esse desenvolvimento não tenha se dado às custas da urbanidade. Uma das razões são as múltiplas centralidades. Ao invés de um centro histórico para o qual convergem todas as atenções, ali é possível ver vitalidade em todos os distritos: lojinhas, izakayas, comida de rua, oficinas, bares e até pequenas indústrias se misturam, gerando uso intenso das calçadas e do espaço público.

Estive em Tóquio anos atrás, mas me lembro perfeitamente da sensação de espanto desde a chegada. Mesmo diante dos prédios gigantescos, o olhar parece atraído para as coisas minúsculas. A limpeza imaculada das ruas, nenhum papel, nenhuma sujeira, nenhum buraco, as calçadas lisíssimas. E o respeito embutido nos pequenos gestos. O fumante que traz seu próprio cinzeiro para não jogar cinzas na calçada, o taxista que usa luvas brancas, o homem que ajuda a fechar as portas do metrô lotado, quase que se desculpando por dar aquela empurradinha nas suas costas e o desconcertante ritual de se abaixar, talvez o maior sinal de humildade que alguém possa demonstrar.

Há uma sensação de segurança, rara nas grandes cidades. No belo livro de Haruki Murakami, “Após o anoitecer”, Mari é uma menina de Tóquio que resolve passar a noite fora de casa. Ela fica horas lendo sozinha numa lanchonete, conversa com estranhos, ajuda uma prostituta e anda por ruas escuras sem sentir medo. É claro que alguns personagens do livro não são o que parecem e é claro que há alguma violência no Japão, mas convenhamos, é até insultuoso comparar os homicídios –mais de 30 mortes por 100 mil habitantes no Brasil contra 0,28 no Japão.

Alguns dos lugares mais ermos de qualquer cidade –os baixios dos viadutos– são, em Tóquio, usados por jovens ou preenchidos com lojinhas, limpos e iluminados a tal ponto que mesmo um turista mais desconfiado se sente tentado a sentar e comer. E como se come por ali! A cidade tem mais que o dobro de restaurantes que Nova York, desde os 220 estrelados no Michelin até uma miríade de balcões com quatro ou cinco lugares. Que se consiga manter uma família com esse tipo de negócio impressiona tanto quanto a qualidade do que se produz, como no fabuloso restaurante de Jiro Ono, retratado no documentário “Jiro Dreams of Sushi”, da Netflix, que cobra US$ 1.000 por alguns sushis.

Essa obsessão pela qualidade, tanto quanto pelo impacto na sociedade, está em toda parte, até na preparação para as Olimpíadas. Já servida por uma das melhores redes de transporte do mundo, Tóquio gastou mais que qualquer outra cidade para construir arenas e ajustar a cidade para receber os turistas que não vieram.

É uma pena. Em outros tempos, talvez tivéssemos visto Rayssa Leal e Rebeca Andrade passeando por Ginza ou Italo Ferreira comemorando sua medalha de ouro num karaokê. Conhecer Tóquio no seu cotidiano teria sido uma boa inspiração para nossos esportistas, para nossos turistas e, por que não, para nossos urbanistas e gestores públicos, interessados em conhecer mais sobre os segredos de como manter a qualidade de vida e a urbanidade nas cidades.

Fonte: Folha de S.Paulo