No meu relógio de pulso à prova d’água, que eu tinha acabado de comprar torrando os únicos dólares da reserva naquela primeira viagem sozinho aos Estados Unidos, eu conferia perplexo a hora, enquanto me refrescava na piscina de um hotel em Miami: eram 21h e o sol brilhava no céu.

Reforço: era minha primeira viagem sozinho aos EUA, mas não exatamente a primeira. Três anos antes, quando eu tinha dez, meu pai e minha mãe levaram a mim e a meus dois irmãos a Cidade do México e a Los Angeles, misturando curiosamente cultura ancestral (maia) e pop (Disney) —um bom presságio do turista que eu me tornaria.

Aquela ida a Miami era diferente: recompensa de um ano em que tinha ido bem nos estudos de inglês. A própria escola ofereceu um pacote para seus melhores alunos, para “aprimorar a pronúncia”. Ah, e visitar a (outra) Disney!

Levei quase uma década para voltar. Só em meados dos anos 1980 conheci Nova York. Junto com minha mãe e meu irmão, fomos roubados num hotel ao lado do MoMA, mas nem liguei, porque havia conquistado Manhattan —tinha “atravessado” a cidade a pé e sozinho do Central Park ao SoHo.

Em 1989, morei lá, um período incrível que já revisitei várias vezes neste espaço. Depois, nos anos 1990, 2000 e até meados desta última década, andei bem por aquele país, geralmente para fazer entrevistas com grandes artistas: Alanis Morissette (Seattle), U2 (San Francisco), Céline Dion (Las Vegas), Alicia Keys (Chicago).

Sem contar os retornos a Nova York —Lady Gaga, Mariah Carey, Tony Bennett, Courtney Love… E a Miami —Britney Spears, The Rolling Stones, Green Day, Sade…

Seja pelo caminho da música ou qualquer outro, aprendi a gostar dos Estados Unidos, com suas glórias e suas esquisitices. Das lojas de armas 24 horas nos subúrbios aos cabarés mais “trash” nas madrugadas, ficava feliz sempre de voltar e saber que iria encontrar algo totalmente novo e inspirador —um hotel art déco reformado em Miami ou uma pousada no casamento de um amigo no Maine; uma loja de artesanato em Boston ou um lago num cânion em Utah.

Nos últimos anos, porém, uma coisa estranha aconteceu. Meu visto expirou em 2015 e eu não tive vontade de pegar um novo. Outros cantos do mundo de repente me pareciam mais interessantes. Só renovei quando fui a Orlando no ano passado (sim, Disney de novo!), mas era a trabalho.

Deixei de ir por lazer. Não era uma atitude consciente nem politicamente muito elaborada, mas não me parecia fazer sentido ir para um lugar que não me queria por lá.

Os absurdos que o mundo e os americanos testemunharam nos últimos quatro anos, papagaiados em tons ainda mais deprimentes pelo resto do planeta, de certa maneira espantaram turistas dos EUA, mesmo antes de eles serem recordistas de casos da pandemia que estamos vivendo.

Mas, aí, olha como são as coisas, vi nesses dias um episódio da ótima série documental “Por Trás Daquele Som” (“Song Exploder”), na Netflix, e, ao saber como um grande sucesso do R.E.M. nasceu, ouvi uma música antiga de David Bowie, “Merry Christmas, Mr. Lawrence”, que me lembrou de outro sucesso dele, “This Is Not America”. Fiquei pensando…

O resultado das eleições presidenciais americanas tinha sido anunciado pela manhã e eu fiz a conexão inevitável: o que a gente viu dos Estados Unidos de 2016 a 2020 não era o que a gente esperava da alma americana. “Isso não é a América.”

Ou é? Por analogia, quando sentimos horror do que está acontecendo por aqui, podemos perguntar também: “Isso é o Brasil?”. Cabeças que respeito tentam me convencer que sim, que parte da humanidade é destrutiva, egoísta, mesquinha, racista e autocentrada.

Mas eu conheço um Brasil diferente também: aquele que se orgulha da mistura e da promessa de liberdade. Que, diga-se, não está muito distante dessa América que agora promete retomar seus valores com a vitória de Biden e Kamala.

E é por essa América, são por esses Estados Unidos (e por esse Brasil também) que eu faço planos de voltar logo a viajar.

Fonte: Folha de S.Paulo