Tudo começou quando eu deixei meu relógio na ponte que conecta Tromsø a Sommar, na Noruega. Estranhei a princípio o pedido para que ele ficasse ali pendurado nas suas grades, mas aí lembrei que já havia lido alguma coisa sobre essa inciativa.

Aparentemente, os 300 habitantes desta ilha na Noruega pediram ao parlamento nacional que abolisse os relógios de todos que morassem ou visitassem aquelas paradas. Fazia sentido: quando um punhado de crianças podia jogar futebol às duas da manhã, em plena luz do sol, para que servem os ponteiros?

Esse detalhe estava na reportagem que havia lido, junto com a informação de que, no verão, estação que dá nome à ilha, são 69 dias sem noite. Quando os próprios astros desafiam uma criação humana, a marcação do tempo, qual o sentido de preservá-la?

Nos meus primeiros passos em Sommar já não pensava mais nisso. Encantado com a natureza e as poucas casas simples da paisagem, decidi logo relaxar e tomar uma cerveja. Ocorreu-me brevemente que ainda não era meio-dia. Mas o instrumento que poderia me ajudar a verificar isso já não estava no meu punho.

O relógio digital do telefone celular também já estava devidamente habilitado a essa altura e fui em frente no meu projeto. Não tinha fome ainda, ela chegaria quando tivesse de chegar. E eu certamente iria achar algum lugar aberto em Sommar para saciar meu apetite.

Não tenho certeza de quantos dias passei por lá, uma vez que não estava contando o tempo. Mas posso dizer que dormi uns dez ou doze intervalos de sono, sei lá em quantos períodos de 24 horas que o mundo lá fora insistia em contabilizar.

Ou não. Quando deixei Sommar, e propositalmente não recuperei meu relógio na ponte, tive a grata surpresa de chegar ao aeroporto de Tromsø e descobrir que meu bilhete servia para qualquer voo de volta a Oslo, sem hora certa para embarcar, dependendo de quando o avião chegasse.

Na capital norueguesa, a mesma coisa. Eu tinha uma reserva para Paris e viajei na hora que quis. Aparentemente a Europa também havia abolido as horas!

Cheguei no Charles de Gaulle no que as pessoas ainda chamavam de manhã e, assim que deixei minhas malas no Marais, vi que em alguns cafés eu poderia encontrar croissants e, noutros, taças de calvados pelas mesas. Com restaurantes abertos quando bem entendessem, era possível almoçar o dia todo. Ou jantar.

Se um museu estava fechado quando a luz do dia já tinha ido embora, outro se iluminava para receber visitantes. E, nos metrôs, o anúncio de quanto tempo demoraria até o próximo trem não fazia nem falta.

De lá fui para Madri e nada parecia muito diferente. Afinal, a visão de mães passeando com seus bebês na madrugada pela Gran Via nunca foi novidade. Mas gaspacho na alvorada? Churros com chocolate degustados na escuridão? Jerez com o sol a pino? “No pasa nada”, como dizem os espanhóis.

A próxima parada foi Istambul, onde os relógios também haviam sido aposentados. Pescadores no Bósforo de madrugada, Gran Bazaar à luz de lamparinas, dervishes dançando com a primeira luz do sol. Numa cidade que já era atemporal, a ausência das horas sequer foi sentida.

A mesma sensação tive em Bali, minha última escala antes de voltar para casa, onde concluí (precocemente) que a tendência era mundial. Ao chegar em Ubud, as celebrações religiosas pareciam infinitas. Os espetinhos de satay perfumavam ininterruptamente as ruas, da mesma maneira que os gamelões soavam sem cessar, sob o sol ou sob a lua.

No trajeto para São Paulo aproveitei as 10 horas de conexão em Londres para conferir se o Big Ben estava “on” nesse novo mundo sem tempo. Sem susto, encontrei os enormes mostradores substituídos por grafites de Banksy!

E assim cheguei na minha São Paulo, no meu Brasil, onde tudo continuava como antes. Pior, parecia congelado num outro tempo, com as pessoas discutindo anacronismos como voto impresso, hesitação com vacinas, fundo eleitoral bilionário.

E percebi que aqui não adianta só abolir o relógio. Temos que aprender a ficar livres do passado.

Fonte: Folha de S.Paulo