Éramos o puro creme da arrogância.

Jovens de classe média que chegáramos à melhor universidade do Brasil. Pública, claro. Brancos, claro. O mais puro creme da meritocracia, palavra que ainda não tinha caído na boca do povo da vizinha FEA.

Um dia, depois da aula, fomos cozinhar uma macarronada. Eu e mais quatro ou cinco marmanjos, espremidos no meu Fiat Prêmio 1987 para a casa de uma colega.

Quase chegando, paramos no Pão de Açúcar da rua da Consolação para as compras. Muito álcool, mas também os ingredientes para o almoço. Espaguete, polpa de tomate, queijo ralado… Não. Espera.

Em vez de colocar o queijo no carrinho, um dos amigos o escondeu na própria roupa.

Eu pensei “merda!”, mas fiquei quieto. Os outros também fingiram que nada acontecera. Depois de pagarmos as compras, a segurança do mercado abduziu o meliante.

Ele foi conduzido para os fundos da loja. O gerente disse que o entregaria nosso amigo à polícia. Voamos para cima do funcionário, num misto de súplica e intimidação: é um bom rapaz, somos estudantes da U-S-P.

No final, saímos do Pão de Açúcar no Fiat Prêmio. Com o amigo intacto e o queijo –necessário, afinal, para a macarronada– pago.

O Beto, de Porto Alegre, saiu do Carrefour no rabecão do Instituto Médico Legal.

Fosse preto como o Beto, meu amigo ficaria preso no almoxarifado até a polícia chegar. Isso na hipótese mais benigna.

O racismo, pensávamos, não tinha nada a ver conosco. A gente era amiga dos intercambistas da Nigéria e frequentava a Balafon, balada da comunidade africana. Integração e igualdade até o segundo parágrafo.

Minha geração de universitários achava cool tomar uísque com um príncipe do Senegal. Ou dividir um baseado com o baterista preto da banda de samba-rock. Pronto. Suficiente. Nossa meta de comportamento antirracista estava cumprida. Seguia a vida.

E a vida seguiu longe do acosso da polícia. Isenta da perseguição de seguranças de shoppings e mercados. A anos-luz do esculacho destinado aos pretos. Quando somos abordados, quase nos pedem desculpas pelo incômodo.

É confortável, quando você tem a consciência entorpecida. Não é fácil contemplar o horror. Mais difícil ainda assumir a própria parcela de culpa na manutenção desse horror.

Aposto um rim que a elite universitária ainda comete pequenos furtos nos supermercados. “Shoplifting”, porque em inglês é mais chique. Nunca sai no jornal, pois os flagrantes se resolvem com panos quentes ou, no máximo, um sermão bem dado. Como há 30 anos.

Jovens brancos e instruídos roubam azeitona, castanha de caju e salaminho para petiscar enquanto contam a aventura para os amigos. Roubam pela emoção, pelo risco de serem pegos com a boca na botija.

Tontos. Não tem perigo algum.

Perigoso, mesmo, é nascer preto no Brasil. Como o Beto, que só queria comer pudim, pagou pelos ingredientes do pudim e morreu no cimento gelado do Carrefour.

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Fonte: Folha de S.Paulo