Aconteceu quando a epidemia engatinhava, em fevereiro de 2020. No porto de Yokohama, no Japão, o navio Diamond Princess foi proibido de desembarcar seus 3.711 passageiros. Um surto de coronavírus a bordo obrigou que todos permanecessem trancafiados por duas semanas em suas cabines —algumas delas, sem janelas. Ao fim da quarentena, 712 pessoas, entre turistas e tripulação, tinham sido contaminadas. Catorze delas perderam a vida.

A tormenta daqueles viajantes em férias foi parecida com a de clientes de outros cruzeiros. Alguns ainda flanavam pelos oceanos quando a OMS declarou, em 11 de março, que o mundo enfrentava uma pandemia de Covid-19. Voltar para casa quando portos e aeroportos fechavam fronteiras virou uma saga.

Integrante do contingente de 30 milhões de cruzeiristas do planeta, minha mãe acompanhou tudo pensando: “Poderia ter acontecido comigo”. Viu adiarem seus dois cruzeiros de 2020. Com idade na faixa de 70 anos, ela é do grupo de risco, como parte dos brasileiros dos cruzeiros (um em cada quatro tem mais de 55 anos). Há mais de uma década, Dona Silvia embarca anualmente para descobrir os sete mares. Muitas de suas amigas são senhoras superanimadas que conheceu nos navios.

Se passageiros fiéis como ela ficaram à deriva enquanto o turismo segue em suspensão, os comandantes do segmento dos cruzeiros tiveram de jogar as âncoras em pleno mar revolto da pandemia. Ao atracar mais de 270 navios em 2020, acumularam perdas superiores a US$ 100 bilhões.

Episódios como o do Japão foram o pior marketing possível para esse negócio.

O primeiro cruzeiro da minha mãe era também a minha estreia. Na rota de Miami às Bahamas descobri que cassinos barulhentos e danças coletivas na piscina não são a minha praia. Nada contra o prazer de navegar. Só prefiro barcos menores, menos gente e destinos remotos, como em lindas jornadas que viveria mais tarde em Galápagos, Antártica e Bai Tu Long Bay, no Vietnã.

Entendo, porém, que o que encanta os apaixonados por cruzeiros é essa fórmula bem-sucedida de embarcações enormes com múltiplos destinos, agenda intensa, conforto e custo-benefício surpreendentes. O setor cresceu 7,6% no Brasil em 2019 e 115 novos navios estão em construção mundo afora.

Como não vai dar para esperar a vacinação em massa para que essa economia volte a girar, sete embarcações estão planejadas para navegar pelo Brasil entre outubro de 2021 e abril de 2022 —isso se a pandemia permitir, é claro. Testagens obrigatórias e protocolos rigorosos vão tentar driblar o vírus –o que tem dado certo nos navios que voltaram a circular na Ásia.

Em algumas cidades turísticas, no entanto, os grandes cruzeiros não serão bem-vindos. Eles simbolizam a ameaça da volta do overturismo. Na era pré-pandêmica, vi de perto manifestações de venezianos contra os impactos da chegada dessas gigantescas torres flutuantes aos seus delicados píeres ricos em história.

Dubrovnik, na Croácia, e Barcelona também vinham rechaçando o despejo, por poucas horas, de turistas aglomerados deixando os navios. Protestavam que estes incômodos forasteiros pouco contribuem à economia e não consomem mais que ímãs de geladeira nas cidades, pois comem e dormem dentro dos barcos.

Quando a retomada acontecer, não vai dar mais para ignorar esse mal-estar das populações locais. Segundo Marco Ferraz, presidente do braço brasileiro da Cruise Lines International Association, soluções têm sido encaminhadas, como ancorar longe dos centros, escalonar as saídas dos passageiros em grupos menores e espaçar a visita entre um navio e outro.

Ainda assim, é preciso questionar esse modelo do turismo de massa. Quem sabe o “reboot” das navegações turísticas seja uma oportunidade para um renascimento dos cruzeiros em formatos mais sustentáveis, uma vez que agora há mais passageiros que, como eu, fogem das aglomerações. Assim,
​Dona Silvia e suas amigas navegarão protegidas do vírus e respeitando os anfitriões enquanto exploram alguns dos lugares mais incríveis da Terra.

Fonte: Folha de S.Paulo