Conheci o Jacarezinho uns anos atrás, quando viajei ao Rio para trabalhar num guia de bares. A van passou ao largo da favela.

Da janela, vê-se uma sucessão interminável de botecos, barbearias e outros comércios abertos diretamente para a rua, quase sem calçada. De quando em quando, surgia a boca de uma viela profunda, estreita e apinhada de gente.

É um gueto que confina quase 40 mil pessoas, apenas mais um dos guetos de gente preta no Rio de Janeiro. Há a Rocinha, a Maré, o Alemão, Manguinhos, Prazeres, 790 favelas listadas pela prefeitura.

Segundo o defasado Censo de 2010, cerca de 1,4 milhão de pessoas moram nesses guetos. Alguns recebem nomes pitorescos: Morro do Boogie-Woogie, Cachorro Sentado, Faz Quem Quer, Kinder Ovo, Salsa e Merengue, Te Contei.

A graça acaba aí. Os bolsões insalubres salpicados pela paisagem urbana são a receita da tragédia do Rio. O massacre desta semana, o mais mortífero até agora, não será o último.

Há quem veja poesia nas luzes do Vidigal ao anoitecer, desde o quiosque do hotel Fasano, no Posto 8. O que eu vejo me dá vergonha de ser brasileiro.

O Jacarezinho não tem a praia nem montanhas nem Mata Atlântica para embelezar a miséria. Toda a paisagem ao redor é árida, feia, suja, cinzenta, poluída. Os turistas desconhecem esse Rio –com exceção dos poucos desbravadores de botecos.

A favela se situa numa zona muito movimentada da cidade. Nos arredores, há o acesso à ponte Rio-Niterói, a Linha Vermelha, a rodoviária, a Cadeg (o ótimo mercado municipal carioca), um parque industrial razoável, bastante comércio.

Ficam por lá dois dos meus bares favoritos no Rio, ambos de propriedade do cearense João Paulo Campos –que foi maître do Fasano antes de empreender no Jacaré, onde também mora.

O Velho Adonis, no vizinho Benfica, é um ponto tradicionalíssimo. No ar desde 1952, firmou-se como referência em comida portuguesa. Decaiu. No final da década passada, o antigo dono jogou a toalha, derrotado pela violência da região.

Repassou a casa para João, que recuperou o brilho antigo e voltou a atrair botequeiros de outras freguesias, dispostos a encarar o risco por um bom bolinho de bacalhau.

Àquela altura, João já era famoso na região devido à sua outra bodega: a Casa do Galeto, no Jacaré, a poucas quadras da cena da chacina de quinta-feira (6/5).

Como o nome diz, ali a especialidade é o galeto –frango muito novo, onipresente no Rio e raro em São Paulo. O público é local: moradores e trabalhadores dos serviços do bairro sempre lotam o bar. E o galeto merece a fama que tem.

Viver no Rio –tive um aperitivo de seis meses em 2019– é uma experiência paradoxal de deslumbre, raiva, tristeza, medo e euforia. Entre uma desgraça e outra, o carioca do asfalto tenta levar a vida normalmente, tomar um chope no boteco, comer um galeto.

No fundo, ele sabe que nada está normal. Essa história, se um dia vier a acabar, não tem como acabar bem.

(Siga e curta a Cozinha Bruta nas redes sociais.  Acompanhe os posts do Instagram, do Facebook  e do Twitter.)

Fonte: Folha de S.Paulo