O título da coluna de 31 de outubro de 2020 perguntava por que os entregadores de comida não nos matam.

A resposta mais óbvia passa antes por outra perguntinha: por que os ricos batem tanto na tecla do mérito individual?

Porque o individualismo é fundamental para a manutenção da ordem social que os favorece. Porque um indivíduo pobre tem medo de ficar tão pobre quanto o vizinho miserável, aquele indolente. Porque, isolado, um pobre é ridiculamente mais fraco do que um indivíduo rico.

Não convém que o indivíduo pobre entenda que, juntos, os pobres têm poder para incendiar “saporra toda”. Para esmagar os ricos como se fossem biscoitos de polvilho.

Mas uma hora a ficha cai. Quando cai bonitinho, vêm os sindicatos, os partidos e, para os ricos, o temor do regime que não ousamos dizer o nome.

Quando a ficha cai girando e batendo em tudo, vêm caos, desastre, destruição e um desfecho tão imprevisível quanto previsivelmente nefasto.

Fiquemos atentos ao que aconteceu em Bauru, no domingo (21).

Uma dúzia de motoboys de entrega da iFood arrombou uma garagem particular e detonou o carro que estava lá. A casa, presumidamente, era de um usuário quer dava golpes no aplicativo: ele recebia a comida e depois prestava queixa, dizia que ela não havia chegado. E assim era reembolsado. As reclamações teriam causado o afastamento do alguns entregadores. Ninguém morreu nem se machucou. Um portão e um carro foram quebrados.

Os motoqueiros já foram humilhados em mais de uma ocasião. Já se organizaram. Já fizeram manifestações. Ninguém deu a menor pelota. Eles continuam invisíveis na pandemia dos ricos que recebem comida em casa.

O caso de Bauru sugere o estopim de uma revolta acéfala, desordenada e incontrolável. O mais provável é que o pavio se apague, mas o fogo não tem como ser “des-descoberto”. E há muita pólvora por aí.

Enquanto isso, o mercado, que tem chiliques com a óbvia vocação intervencionista do presidente, segue ignorando os sinais do andar de baixo. Da galera que passa o dia inteiro com a bunda na moto. Que se espreme nos ônibus para trabalhar no home-office dos outros. Que morre suada nos hospitais de gente pobre. Que já não consegue comprar a mesma quantidade de comida com a mesma esmola que lhe dão.

Enquanto isso (2), o eleito do mesmo mercado mexe as peças para armar suas brigadas e milícias. É para sustentá-lo no poder em caso de derrota eleitoral. Mas também funciona para receber a bala os pobres furiosos com a queda da ficha.

O mestre Elio Gaspari chamou de “rebelião do bauru” a desobediência civil do dono da lanchonete paulistana Ponto Chic –onde o sanduíche bauru foi criado. O comerciante, em protesto à ida do prefeito Bruno Covas ao Maracanã, manteve a casa aberta em horário proibido pelas regras de contenção da pandemia. Essa é a rebelião dos ricos. A dos pobres, a rebelião de Bauru, sem artigo e com maiúscula, tende a ser mais violenta.

Quero estar errado. Se não estiver, sei lá como pode acabar a revolta dos entregadores de comida e companhia. Só sei que a coisa vai ficar muito mais feia do que uma pizza que viaja na motoca empinada.

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Fonte: Folha de S.Paulo