Algumas semanas atrás um amigo parisiense me enviou a notícia da morte do jornalista gastronômico francês Sébastien Demorand. Eu quase não o conheci, a não ser por rápidos contatos nos bastidores e alguns eventos paralelos do festival Omnivore, que reúne aulas e jantares na capital francesa. Era ele quem introduzia os chefs antes de cada apresentação.

Demorand se foi cedo, aos 50 anos, vitimado no dia 21 de janeiro último pelo câncer. Teve uma intensa atividade como jornalista especializado, tanto em veículos da mídia impressa quanto em guias (Gualt & Millau, Fooding), emissões de rádio e também na televisão, onde estreou em 2010 como jurado do Masterchef francês, posição em que ficou por alguns anos.

Mas sua contribuição ao mundo da gastronomia pode ser resumida numa palavra: ele criou o termo bistronomia (“bistronomie”). De certa forma, tornou claro para o público —tanto turistas quanto nativos— a existência de uma espécie de “terceira via” onde seria possível, na sofisticada França, mas também em qualquer outro país, aproveitar um pouco do melhor de dois mundos da cozinha.

Pois quem viajava pela França 20 anos atrás, caso se interessasse por comida, sabia que o cenário gastronômico se dividia, muito basicamente, em dois polos: de um lado, a alta gastronomia dos restaurantes de luxo; de outro, a cozinha mais trivial de bistrôs e brasserias. Ambas com seus atrativos e suas delícias, mas de certa forma estigmatizadas por um precipício que funcionava como uma fronteira inexpugnável entre os prazeres que uma ou outra poderiam oferecer.

Foi a bistronomia que construiu uma primeira ponte de intersecção entre ambos os mundos. Não foi o jornalista que inventou o conceito, mas ele conseguiu identificar uma tendência que nascia, e ao resumi-la numa palavra inspirada, terminou ajudando o movimento a ganhar força e seguir em frente.

O termo “nouvelle cuisine”, cunhado nos anos 1970, teve uma história parecida. Aquele movimento de renovação da culinária francesa já estava em marcha, pelas mãos de chefs como Bocuse, Troisgros, Guérard, Vergé, Senderens, Chapel. Mas o mundo só veio a reconhecer aquilo como uma tendência coerente quando dois jornalistas, cujos sobrenomes nomeavam o guia que editavam, o Gault & Millau, lançaram o rótulo “nouvelle cuisine française”.

Nos anos 2000 o surgimento de restaurantes na França que se esforçavam por oferecer uma cozinha de inspiração trivial, mas com elaboração sofisticada, em ambientes mais informais e com preços moderados, já começava a se firmar pelas mãos de alguns chefs de renome.

Christian Constant, que chefiara o luxuoso restaurante parisiense Les Ambassadeurs, do Hôtel de Crillon, decidira seguir caminho próprio, abrindo seu Violon d’Ingres, mais elegante e estrelado pelo guia Michelin. Na mesma calçada, abriu também o trivial Café Constant, e depois (ainda vizinho) o Les Cocottes, mais moderninho, mas igualmente baseado em pratos familiares, graciosamente servidos em panelinhas de ferro.

Ao mesmo tempo, seu discípulo Yves Camdeborde, hoje provavelmente o mais prestigiado chef da bistronomia, ao sair do Crillon abriu um bistrô, o La Régalade, que logo chamou a atenção dos gourmets. Ao vender o restaurante, ele abriu em 2005 o maravilhoso Le Comptoir du Relais, onde a cozinha de bistrô com especialidades de várias regiões (especialmente o sudeste da França, onde nasceu), servida no almoço, convive com um cardápio de degustação mais autoral (mas também muito barato) servido no jantar.

Hoje em Paris (e no mundo) há inúmeros restaurantes, alguns bem modernos inclusive, que se poderia classificar no rótulo da bistronomia. Num momento em que o chef número um do mundo (segundo a lista World’s 50 Best Restaurants) fica na França (no restaurante Mirazur, em Menton), mas é argentino, Mauro Colagreco, não posso deixar de mencionar um dos meus endereços do coração em Paris.

Com a maior cara de bistronomia (que nos seus primórdios costumava ficar em bairros periféricos, que possibilitavam preços mais baratos), o Le Baratin fica meio longe do centro, no vigésimo distrito; mas serve uma caprichadíssima comida de bistrô com alguma inspiração autoral. E a chef, Raquel Carena, é também argentina.

Fonte: Folha de S.Paulo