Muito tempo atrás, quando a Antarctica era concorrente da Brahma e a Sadia era concorrente da Perdigão, todos os sábados eu ia com meus país à casa da vó Carmen, no Ipiranga.

Na volta, sempre passávamos perto da fábrica da Visconti, que na época era concorrente da Bauducco.

Todo sábado, o Opala branco do meu pai era invadido pelo cheiro de biscoito no forno. Quando chegava o fim do ano, o cheiro mudava um pouco, adquiria notas de casca de laranja. Era o panetone saindo. Eu adorava aquele cheiro.

Não tem nostalgia aqui.

Eu gostava do cheiro, mas nunca consegui gostar de comer o panetone, que lá em casa era devorado aos quilos, com café. Eu tampouco gostava de café. Era um tédio infinito acompanhar a família à mesa da cozinha.

Como se diz por aí: o problema sou eu, não é o panetone. Sei que é uma coisa boa, eu que não me entendo com ele.

As frutas cristalizadas eram uma questão que eu consegui superar. Hoje, encaro sem sofrimento algum.

O que me desagrada no panetone é a textura da massa. Algo que tem cheiro de bolo, mas é pão. Nunca doce o bastante, nunca molhadinho o bastante. Sempre um pouco ressecado para o meu gosto.

(Suspeito que haja um problema no fluxo industrial do panetone. Como o consumo é enorme e todo concentrado em dezembro, as fábricas começam a mandar brasa vários meses antes, para fazer estoque. Quando finalmente chega a época de comer panetone, muito do panetone que você compra já está meio velho.)

Mas, enfim, acredito que eu não seja o único a não amar panetone.

As fábricas de panetone sabem que existe uma multidão de pessoas que não liga para panetone. Elas fazem de tudo para fisgar esse consumidor rebelde. Fazem chocotone, panetone de brigadeiro, de Nutella, de doce de leite argentino. Neste ano tem até panetone salgado.

Porque você precisa comer panetone no Natal. Não interessa se você gosta ou não. Aliás, como é possível não gostar de alguma das centenas de opções de sabor?

Tem panetone de açaí e de cupuaçu. Panetone de pistache, de amêndoas e de avelã. Panetone de chocolate suíço, de chocolate belga, de chocolate alemão, de chocolate baiano. Panetone de bacalhau, de provolone, de calabresa, de frango com catupiri.

Dá para fazer uma seleção regional de panetones. Panetone de tacacá para o Norte, de acarajé para o Nordeste, de frango com pequi para o Centro-Oeste, de marreco recheado para o Sul e de feijoada completa para o Sudeste.

Não dá para não gostar de pelo menos um deles. O marketing do panetone trabalha para nos incutir a noção de que existe um panetone lá fora feito especialmente para você.

Porque Natal sem panetone não é Natal. Você precisa comer panetone. Eu já disse isso? Desculpe. Só que você precisa comer panetone no Natal.

O Natal há tempos vem sendo corroído pelas metas de vendas, pelo calendário de ações sazonais, pelo consumo compulsório que vai garantir o bônus de meia dúzia de executivos.

O panetone gourmet, inventado para empurrar panetone goela abaixo de quem não gosta panetone, é o retrato perfeito dessa face maligna do Natal.

Fonte: Folha de S.Paulo