Dentre tantas perdas que empobreceram a humanidade no ano de 2020, a de um personagem da gastronomia repercutiu pouco no Brasil: a de Sirio Maccioni, que reinou por décadas na gastronomia de Nova York à frente do restaurante Le Cirque.

Ele representava com imponência a figura do restaurateur: o dono do restaurante, responsável por todas as áreas, da cozinha (afinal, é quem escolhe o chef) ao salão, passando por toda a retaguarda.
Maccioni morreu aos 88 anos, aposentado e com sintomas de demência, em sua cidade natal na Itália, Montecatini. Fundou o Le Cirque em 1974 (em 2018 fechou; seu filho pretende reabrir em outro local).

Durante décadas ele recebeu ali o topo da sociedade mundial, de empresários a artistas, de políticos a celebridades avulsas.

O olho atento de Maccioni revelou-se em incontáveis episódios. Num deles, na era pré-internet (quando era mais fácil manter-se no anonimato), a então crítica de restaurantes do jornal The New York Times, Ruth Reichl, que fizera reserva com nome falso (e às vezes até se disfarçava), chegou ao Le Cirque pouco antes da hora e postou-se no bar. Maccioni, com quem nunca havia falado, aproximou-se e disse: “Senhora, aquele ali no balcão é o rei da Espanha, esperando mesa; mas a sua, é claro, já está pronta”.

Com a nouvelle cuisine francesa a figura do chef de cozinha ganhou proeminência, o que foi justo, já que muitas vezes sua importância era ignorada. Era o maître que brilhava. Mas em muitos lugares havia o restaurateur que ficava na linha de frente, e alguns se tornaram míticos; enquanto os chefs passaram a dar breves volteios pelo salão, o “patron” ficava ali todo o tempo, criando a fundamental atmosfera de hospitalidade.

Um dos símbolos desta função, na França, foi Claude Terrail, do La Tour d’Argent, que durante décadas assumiu a função que herdou de seu pai e a legou a seu filho: a aura da família continua lá. Mesmo que não impere a lei não escrita que faz com que, no Japão, a função de continuar o negócio do pai seja mandatória –e por isso tantos restaurantes, inclusive os menores, estejam na ativa, e na família, por décadas.

Nos pequenos restaurantes mundo afora, há uma diferença abissal entre os lugares de rede, com atendimento padronizado, e aqueles em que os proprietários recepcionam os clientes. Nas pequenas osterias italianas, nos bistrôs franceses, nos balcões japoneses, nos carrinhos de rua da Tailândia, a conexão do cliente com o proprietário —e vice-versa— pode fazer toda a diferença.

Nos grandes restaurantes, o “dono” ganha o título mais pomposo de restaurateur. O Brasil conhece alguns que já nos deixaram, e outros ainda na ativa. Lembrei do assunto quatro anos atrás quando foi reinaugurado, depois de demorada obra, o hotel Ca’d’Oro em São Paulo, que tinha um grande restaurante tocado pela família proprietária.

Na reabertura, estava ali a postos um jovem da terceira geração dos fundadores, Fabrizio Guzzoni. Curiosamente, durante as obras ele passara dois anos trabalhando no La Tambouille, de Giancarlo Bolla, que por sua vez fora funcionário de seu avô. Bolla, que morreu em 2014, ex-maître do Ca’d’Oro, e foi daí que nasceu seu perfil de competente restaurateur.

O proprietário tem muito trabalho nos bastidores. Mas a magia do salão é a parte mais visível do seu trabalho, e mais sensível para a clientela. Veja-se os tempos em que o La Casserole tinha a presença diária do casal de fundadores, Fortunée e Roger Henry, dando-lhe autenticidade e calor. Ao se aposentarem, com uma suave transição o posto foi ocupado por sua filha Marie-France, hoje já ladeada pelo filho Leo.

Rogerio Fasano, o mais vistoso dos restaurateurs brasileiros, herdou o tino de seus antepassados, mas seu pai, Fabrizio, dedicava-se a outro ramo (bebidas) no longo intervalo em que a família não teve restaurantes. Quando voltaram, coube a Rogerio a impecável condução da operação. Mas se o pai não era um restaurateur nato, sempre demonstrou ter um talento indispensável para a função: a afabilidade insuperável em receber as pessoas em sua casa.

Seja qual for o porte, o país, a nacionalidade da cozinha, a presença do dono é um tempero inestimável.

Fonte: Folha de S.Paulo