“Naquela mesa tá faltando ele/E a saudade dele tá doendo em mim”. Os versos são de Sérgio Bittencourt, que compôs o samba “Naquela mesa” para homenagear o pai morto –apenas  Jacob do Bandolim.

A mesa em questão ficava na sala de Jacob e, segundo o relato do filho, era onde o bandolinista reunia amigos e familiares para jogar conversa fora.

A dor particular de Sérgio –ao ver a mobília vazia enquanto as memórias do pai se dissipam– reverberou em multidões e órfãos brasileiros de todas as idades, graças à pungente interpretação de Nelson Gonçalves. O que não falta em nenhuma família é mesa com cadeira sobrando.

Na minha casa, a mesa de estimação do velho ficava na cozinha. Às vezes ele se sentava à mesa da sala para tomar um vinho ruim. Ou na escrivaninha sobre a qual fazia planilhas de despesas com régua e lapiseira. Mas era na mesa da cozinha que o pai batia ponto com mais frequência.

Sempre de chinelo de couro, bermuda larga e camiseta regata, ele se aboletava num canto muito estratégico para pilhar a geladeira confortavelmente.

Sua comilança não tinha horário nem critério: pão, queijo, goiabada, feijão roubado da panela antes do almoço, salame, azeitonas, na ordem que ele bem entendesse.

Meu pai morreu na hora dele, o que não alivia em nada o peso de sua ausência. Milhares de outros filhos, entretanto, vão encarar cedo demais a mesa com aquela cadeira vazia.

* * *

Mudando radicalmente de mesa –mas nem tanto de assunto–, levei meu filho de 8 anos a um restaurante pela primeira vez em muito tempo.

Desde o semestre passado, ele retomou aos poucos as aulas presenciais e o convívio com outras crianças. Já as refeições, por cuidado sanitário e prudência financeira, eram sempre em casa.

A monotonia cansou o menino. De uns tempos para cá, ele vem pedindo (para mim, não para o iFood) comida de delivery. Não adianta tentar resolver com hambúrguer caseiro.

Dói um pouco ver o brilho nos olhos do guri ao devorar um sanduíche que chega meio frio e todo engruvinhado. Respiro e penso: tudo bem. Se até eu estou farto da minha própria culinária, como posso culpá-lo?

A ida ao restaurante foi por necessidade: ele tinha médico no fim da manhã, sem tempo de passar em casa para comer antes de ir para a escola.

Fomos a um restaurante bem simples, que serve pratos feitos em mesas ao ar livre. Bife, arroz, feijão, farofa e salada, nenhum primor de qualidade ou de execução.

A criança degustou cada pedaço de filé passado demais como se fosse um negócio mágico, elogiando a comida e o restaurante nos intervalos das garfadas. Raspou o prato até o último pedaço de alface.

Então caiu a ficha. Naquela mesa estava faltando ele, meu filho –eu já voltei aos restaurantes, meio ressabiado, por obrigação profissional.

O confinamento nos roubou a alegria de coisas banais como comer fora. Precisamos reconquistar o mundo, devagar e com um pé atrás, antes que sejamos todos misantropos. E até quando a tal variante delta nos permitir.

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Fonte: Folha de S.Paulo