A perna direita está sobre a mesa na direção oposta do fio do telefone que toca a orelha esquerda do repórter; os cotovelos, apoiados sobre um livro, um catálogo e cadernos variados, um deles de Informática.

Fosse esse retrato do final da década de 1980 um oráculo dos anos vindouros, ele talvez estivesse dizendo: “Dedique-se e divirta-se”. O cabelo partido ao meio (quase) e os óculos de armação mutante (sempre) inspiravam seriedade, na contramão da postura alongada. O contraste, no entanto, era bem-vindo: naquelas mesmas mesas onde o Manual da Redação era um texto sagrado, era possível escrever uma pauta que tivesse pelo menos uma ou duas brincadeiras.

Por exemplo: “Na entrevista desse novo talento da MPB, tente disfarçar seu desprezo por qualquer música composta depois dos anos 60”. Ou: “A matéria da abertura do festival de cinema deve citar pelo menos um filme que não seja da Europa do Leste”.

Um pouco de humor sempre foi necessário para enfrentar a tensão do fechamento —“Desce!”. Ah, a lembrança de um crítico de música que, ao ouvir “se não puser no tamanho e descer agora vai entrar calhau”, suplicar “corta os dois primeiros parágrafos!”, fazendo seus colegas se perguntarem se ele sabia o significado de “lead”.

O próprio repórter da perna estendida só aprendeu isso na própria Folha, como aliás todos os elementos básicos para um bom jornalismo. Com um currículo de bailarino e aprendiz de marchand, mais uma formação em administração de empresas e outra em propaganda, sua contratação era improvável, mas vingou.

Não foi mal a aposta de Lilian Pacce, que o convidou para escrever seu primeiro artigo —sobre leilões de fim de ano em galerias de arte de São Paulo (promissor!) no extinto Casa e Companhia, no qual o repórter também improvavelmente havia sido modelo de um ensaio de moda de roupa de mergulho. De lá saíram outros voos, outras palavras.

A paixão por escrever ganhou forma na missão de informar desta Folha e daí nasceu esta relação de exatos 34 anos: seu primeiro dia de contratado foi na Quarta-feira de Cinzas de 1987. Dos 100 anos que o jornal comemora, ele, de alguma forma, colaborou em um terço deles, de várias maneiras.

Escolhendo com Fernanda Scalzo uma foto gloriosa de “Amores Expressos” (Wong Kar-wai) para a capa de um caderno sobre a Mostra de São Paulo. Discutindo artigos da revista The New Yorker com Paulo Francis. Acompanhando o desespero de José Simão em um deadline. Criando uma coluna de TV (Outro Canal) quando isso ainda era novidade. Rindo com Joyce Pascowitch de uma nova gíria da cidade.

Fechando uma capa com Marion Strecker.

Como a do álbum de Sinéad O’Connor, “I Do Not Want What I Haven’t Got”. O arrepio de reconhecer o nome dele ali na página, jamais domado até hoje. E levado ao limite quando o viu impresso na primeira página desta mesma Folha, em 1989. Correspondente em Nova York, Cazuza admitiu a ele, pela primeira vez, que era soropositivo: “Pode escrever aí que eu tô com a maldita”.

O mesmo nome já foi legenda para Mônica Bergamo, tema de editorial da página 2, item da lista de convidados da Casa Folha na Flip. Ecoou evocando suspense, quando um segurança impediu o repórter de entrar na Redação, e euforia, no dia em que Otavio Frias Filho o convidou para ser editor da Ilustrada.

E hoje ele aparece no topo desta coluna, que excepcionalmente não fala de viagens, mas reflete sobre a própria relação do repórter com este jornal.

Que evoca amor e ódio. Admiração e repúdio. Aproximação e afastamento. Contrastes necessários nessa dinâmica entre quem escreve e quem lê. Ou, ainda, quem escreve e lê. E pulsa e vibra. E se estende por quanto tempo a gente seguir no pacto de pensar sobre o que está acontecendo.

Seja num bastidor de um grande show, a bordo de um avião para Luang Prabang, na sacada de uma passeata pelas Diretas Já, ou simplesmente esticado em uma mesa da Barão de Limeira.

Fonte: Folha de S.Paulo