Viajantes de há muito usam guias e livros para se inspirar. Inclusive se têm algum interesse específico —como a gastronomia. Embora hoje ganhe relevância o formato eletrônico.

Quando comecei a viajar para escrever sobre comidas e bebidas, os livros imperavam. E me fascinavam. Cheguei ao atrevimento de, sem experiência, combinar com a editora francesa Robert Laffont de publicar seus livros no Brasil (terminou não acontecendo).

Comprava guias de restaurante e turismo durante as viagens. O Michelin, fundado em 1900, imperava na Europa (só mais recentemente lançaram edições fora do continente). Mas também gostava do Gault&Millau, pelos textos irreverentes, dos italianos Gambero Rosso e L’Espresso, de guias autorais (Pudlowsky, Lebey).

Nos Estados Unidos, o Zagat era a jogada de mestre: fingia compilar notas e comentários dos leitores, portanto mais “democrático” (mas garanto, quem decidia as notas, e muito bem, era o casal de fundadores do guia, vendido depois para o Google).

Na atualidade há sites que agregam opinião de internautas, e transformam esta soma aleatória em pretenso juízo crítico. Um horror. Em qualquer área do conhecimento existem especialistas que estudam —e experimentam— para sugerir ao público o que melhor comer, assistir, ouvir…

Estas fontes ainda existem, mas ganharam força as plataformas “colaborativas”. Que livro ler este fim de semana? Que música ouvir? Você pode seguir a orientação “democrática” da multidão, que recomenda o livro do topo da lista dos mais vendidos (alguma estupidez de autoajuda) ou dos hits do Spotify (alguma a-berração subsertaneja).

No caso de restaurantes, os americanos obedecerão ao Yelp, os japoneses, ao Tabelog, e mundo afora, o Trip Advisor —mesmo com tantas quadrilhas que vendem pacotes de likes nessas plataformas, ou tanta gente despreparada que só dá notas por simpatias ou interesses pessoais.

Um cenário que pode ser apocalíptico —mas também pode ser negado pela realidade, que já decretou a morte do livro ou do jornal, mas por enquanto não é o que se vê. Tanto que você aqui nos lê.

Além dos guias, havia também revistas e jornais, na Europa e nos Estados Unidos, que eu devorava com o atraso com que os recebia. E minha ambição, nos primeiros passos dentro de uma grande redação, era fazer um jornalismo de gastronomia que atendesse aos mais amplos interesses da área —do cozinheiro ao consumidor, passando pelo produtor e outros profissionais. Por sorte essa Redação foi a da Folha.

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Minha casa assina a Folha desde a minha tenra adolescência. Desde antes dela se tornar o que é —e eu também.

Como leitor, como funcionário (nos primórdios) e depois colunista, tive minhas arestas com o jornal. Mas que não foram nada, comparados à oportunidade profissional de usar seu nobre espaço onde pude tentar:

Abordar a gastronomia com outros olhos, como um direito humano e não um privilégio aristocrático;

Implantar uma crítica de restaurantes e bebidas feita com objetividade e isenção, e não apenas fígado e paixão;

Lançar luz sobre a cozinha brasileira e popular, antes sufocada pela visão arrogante e europeizada;

Realçar o papel dos cozinheiros, antes obscurecido pelas lantejoulas do salão;

Desarmar temores diante de uma cozinha que ouse ser transgressora e vanguardista, quando exercida com arte e sabor;

Ajudar a desvendar os vínculos entre a arte da mesa e aquela do produtor, do artesão, do suor de quem trabalha dentro e fora do restaurante;

E localizar o jornalista não como confrade do festivo mundo dos personagens da gastronomia, mas como seu discreto observador e companheiro de viagem.

Onde mais, naquela época, eu teria espaço para batalhar por ideias que eram, então, bizarras num mundo em que a cobertura de comida era limitada às receitas para donas de casa, e a de restaurantes, quase coluna social?

Fazendo as contas, eu usufruo a Folha há metade da vida dela, uns 50 anos. Período em que soube tolerar desavenças, sem arredar pé de continuar lendo e escrevendo. Mas com uma vingança implacável: a Folha também me tolera há um tempão… 35 anos! Vai ver nos merecemos, com perdão pela gritante imodéstia.

Fonte: Folha de S.Paulo