Durante um evento desses virtuais outro dia, discutindo o futuro do turismo com um especialista em agências de viagem, deparo-me com uma informação inédita sobre a recuperação do setor.

Sua colocação tinha a ver com o otimismo pelo provável aumento na procura de passagens e pacotes turísticos, numa resposta direta a algo que meu entrevistado chamou de “Índice de Viagens Reprimidas”. Sem nenhuma ironia.

Tomei nota da expressão e, na primeira brecha, pedi que me explicasse o que era o tal índice, que batizo agora de IVR.

Num raciocínio claro e lúcido, ele me conta que este é o resultado de meses de planos de férias canceladas, ou mesmo curtos feriados suprimidos, multiplicado pelo desejo das pessoas de explorar seu tempo livre, dividido pelos obstáculos que a pandemia trouxe para nossa mobilidade global.

Eu talvez tenha inventado algo dessa equação, mas juro que foi só para você entender melhor o conceito. E até se identificar. Que foi exatamente o que aconteceu comigo: num cálculo rápido, enquanto o próprio evento se desenrolava (eu era o mestre de cerimônias), cheguei à conclusão que meu IVR era de 99%.

Traduzindo: estou desesperado para viajar novamente. Alguém aí se identifica comigo?

Não sou de ficar reclamando por bobagem. Vivemos uma realidade onde tragédias como a da menina que, abusada pelo tio dos 6 ao 10 anos, é condenada pelo aborto do filho de seu estuprador por um bando de fanáticos, numa total inversão de valores.

Um mundo em que esses mesmos fanáticos não só ganham cínicos apoios no anonimato das redes sociais como, isca fácil para cliques na internet, conseguem repercussão notável com seu “protesto”, quando o que mereciam era serem ignorados (e eventualmente punidos pela invasão de privacidade da menina, traumatizada pelo resto da sua vida). E eu aqui falando sobre IVR?

Ocorre que esse achado, apesar de ter surgido neste período tão crítico para nosso questionamento sobre o que é ser humano, já existia antes de ganhar um nome, uma definição. O Índice de Viagens Reprimidas esteve sempre comigo (e com você, posso apostar). E por isso resolvi estudá-lo melhor.

Tentei aplicar a “ciência” a várias outras experiências passadas e ver a que resultado chegava. Por exemplo, passeando pelas centenas de estupas no templo budista de Borobudur, na ilha de Java, Indonésia, qual era meu IVR? 88%.

Descendo o bondinho de Lisboa, lá do Bairro Alto para a avenida da Liberdade, embriagado pelos vinhos do Pedrão (então na Garrafeira Alfaia) e pelo carinho dos meus amigos que celebravam comigo meus 45 anos? IVR: 96%.

Chegando exausto de uma viagem de carro de Nova Déli a Udaipur, na Índia, e admirando a luz de fim de tarde no lago Pichola? IVR: 89%.

Descobrindo sem querer um restaurante onde tudo é defumado no segundo subsolo de uma loja de departamentos em Shibuya, Tóquio? IVR: 91%.

Acordando cedo para ver a primeira luz do dia no Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, MG? IVR: 92%.

Vivendo a sensação de flutuar sobre a Terra no salar de Uyuni, na Bolívia? IVR: 97%.

Chegando à caverna dos mil budas na região de Luang Prabang, no Laos, acompanhado de 38 amigos na minha festa de 55 anos? IVR: 98%.

Atravessando o muro de Berlim em 1986? 86%. Explorando as águas do Marajó (PA)? 93%. Atravessando o Bósforo no inverno de Istambul? 88%. Dormindo num “yurt” no deserto da Mongólia? 95%.

Todos índices altos, reparou? É porque quem tem o espírito de viajante nunca está completamente saciado, por mais incrível que seja a nossa experiência. Sempre queremos mais. Com ou sem isolamento, nossa meta é 100%.

IVR, obrigado por ser sempre nossa mola impulsora! Que nos leva pelo mundo e nos permite, nos dando uma visão mais clara de quem somos, discutir e combater aquele outro índice que muito nos entristece: o IEH, onde o “e” vem de estupidez e o “h” eu deixo para você mesmo completar.

Fonte: Folha de S.Paulo