Em tempos de pandemia, que parecem não acabar mais, o padrão de turismo tem sido muito mais o da fantasia sedentária do que o do deslocamento físico.

Imagino que na última grande epidemia mundial, cem anos atrás, a literatura tenha sido a principal via de escape para que a mente, imobilizada nos corpos encarcerados, passeasse pelo mundo.

Hoje existe também o cinema —nem tanto as salas de exibição, também em sucessivas quarentenas, mas o cinema em casa. Pelas telas variadas, da televisão ao celular, e anabolizados pela abundância de conteúdo do streaming.

Divido meu tempo livre entre os livros e as telas. Foi na Netflix que embarquei na mais recente viagem gastronômica, a série (por enquanto com apenas dois episódios) “A Coreia em um Prato” —na verdade, um ingrediente: a barriga de porco.

Eu acabara de ver “Dix pour Cent”, sobre uma agência de atores (também Netflix), cuja última temporada com roteiro cheio de furos mantém o charme habitual, e na qual minha viagem era mais sentimental (pelas lindas tomadas de Paris, cidade que mais visitei fora do Brasil).

E de repente embarquei nesta série coreana, na qual o centro é a comida —a carne de porco. Minha curiosidade foi aguçada desde o início porque, ao contrário de Paris, não conheço a Coreia, que tenho muita vontade de visitar. E uma das razões é a comida, que me parece ter um papel crucial na cultura local, como em muitos países asiáticos.

Prova disso é a pequena guerra desencadeada no fim do ano passado em torno do kimchi, a conserva picante de vegetais (especialmente um tipo de acelga) que os coreanos consideram patrimônio nacional. Para horror deles, os chineses anunciaram que uma receita local, da província de Sichuan, fora adotada pelo ISO (o instituto internacional de padronizações) como a referência definitiva do prato.

O governo coreano reagiu, lembrando, entre outras coisas, que a tradição do preparo de kimchi foi definida pela Unesco como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade em 2013. As redes sociais do país enlouqueceram diante da pretensão chinesa.

A paixão por sua culinária foi um dos motivos que me levaram ao sofá para ver pela TV coreanos preparando e comendo barriga de porco. Só não esperava que, logo aos 11 minutos do primeiro episódio, a trilha sonora me pegasse de surpresa.

Após canções coreanas e trechos música clássica, o apresentador da série, chef Paik Jong-won, começa a fatiar um porco, mostrando suas diferentes seções —paleta, pernil, lombo. Deixa para o final a estrela do programa: a barriga de porco. Ao levantá-la e exibi-la em todo o seu esplendor, passa a mostrar seus cortes enquanto começa a soar o hino… do Brasil!

Não entendi nada. Será que alguém lá sabia que o porco é cultuado aqui como parte essencial da feijoada? Ou que temos aqui um estado chamado Minas Gerais, que é capaz de defender receitas com o mesmo furor com que os coreanos defendem o kimchi? Ou somente quiseram uma melodia retumbante para realçar a importância do produto, sem se dar conta de que era o Hino Nacional Brasileiro?

A última hipótese é a mais provável. Tem até coerência com o título original da série, “Rapsódia da Barriga de Porco Coreana”, a descrição épica de uma história nacional (embora o motivo musical, neste trecho, nada tenha a ver com a nação coreana).

O mistério da trilha não é o único. A edição do programa às vezes lembra o efeito de zapping —pula de um assunto a outro sem uma conexão aparente. Ou talvez seja porque, outra dificuldade, o tempo todo aparecem legendas e textos em coreano que não são traduzidos, provavelmente explicando quem são as pessoas, os locais, os processos mostrados.

Ainda bem que o assunto é comida e, mesmo sem provar, o que vemos já traz muita informação. A série glorifica a barriga de porco (e o animal todo) e mostra preparos típicos em diferentes regiões do país, desde receitas camponesas até restaurantes refinados da capital. E assim ajuda a passar o tempo em meu assento, transformado na pandemia numa espécie de sofá voador.

Fonte: Folha de S.Paulo