Todo fim de ano, ocorre um fenômeno paranormal tão infalível quanto a simpatia da folha de louro dentro da carteira: o vaticínio das tendências gastronômicas do ano seguinte.

Por inércia e falta de assunto, jornalistas da área de comida soltam a Mãe Dinah interior em dezembro. Fazem algumas previsões bem genéricas: preocupação com sustentabilidade, zelo na escolha dos ingredientes, resgate de tradições ancestrais.

Mas às vezes chutam alto, com profecias extremamente específicas: será o ano do cumaru, do vinho laranja, da cozinha guatemalteca, dos queijos de búfala de Marajó.

Tanto faz. Pouca gente lê, ninguém aparece para cobrar resultados um ano depois.

Sinto-me seguro o bastante para engrossar o coro das tendências de 2021. Será o ano da fome. Vai faltar comida na mesa dos brasileiros.

Não tirei minha previsão do WGSN –World Global Style Network, a bússola do que é trendy para pessoas cool. Falta-me dinheiro para pagar por tal serviço, excuse-moi. Foi com base na minha pindaíba que eu tracei o cenário acre para o ano que vem.

Em 2020, abandonei por completo as extravagâncias à mesa. Nada de pato, polvo, cordeiro, presunto cru, mirtilos, pistache, iogurte de ovelha, xarope de bordo, doce de leite argentino. Só comprei vinho quando teve visita –ou seja, nunca. Passei os dias na internet, a caçar o preço mais baixo da latinha de cerveja.

Aquele bife ultra premium top de gado nobre marmoreado de carrara não mostrou a fuça por aqui. Troquei a picanha por fraldinha por patinho por acém por carne de porco por ovo –sempre com a inflação no meu encalço.

Aprendi, na marra, a valorizar os ingredientes nacionais. Em vez de grana padano, queijo meia-cura fantasiado de parmesão. Fiz meu próprio macarrão com farinha e ovos para fugir da massa de trigo duro importada.

Sou privilegiado, não nego, e também sei ligar lé com cré. Se acontece comigo, acontece com um contingente monstruoso de pessoas de classe média. Se é ruim para a classe média, é duplamente péssimo para os pobres.

Esta Folha publicou, na terça-feira (23), matéria bem didática com a variação dos preços dos ingredientes das ceias de fim de ano. O arroz subiu estúpidos 72,7% em 12 meses. O leite aumentou 29,5%, e os ovos ficaram 16,4% mais caros.

Fora da cesta festiva, a carne bovina teve alta de até 49%. Seu preço “mudou de patamar”, eufemismo para dizer que o nabo não retrocede.

Na outra ponta, a renda dos trabalhadores também mudou de patamar… para baixo. Falta trabalho, o pouco trabalho disponível paga pouco, as garantias trabalhistas viraram poeira. O auxílio emergencial saiu para comprar Coca com casco de Pepsi.

Enquanto isso, certa elite acha justo pagar R$ 2.392 no quilo do limão-caviar para brincar de Masterchef –porque é uma plantinha danada de difícil para produzir.

Já temos a peste. A fome está a caminho. A guerra mandou avisar que está atrasada.

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Fonte: Folha de S.Paulo