A cozinha alagoana parece viver um momento de certa contradição. Ao mesmo tempo em que mata algumas tradições, como a rapadura, que envolve um fazer ancestral, vive um cenário efervescente, a lançar cozinheiros e chefs empenhados em valorizar a cultura local e revelá-la para além das fronteiras. 

Estão à míngua, por exemplo, os engenhos. Outrora numerosos, hoje sobram poucos remanescentes; e sobe o consumo de açúcar refinado. 

Essa demanda pode soar paradoxal num território que concentra uma das safras mais ricas de cana e que desenvolveu produtos que partem de sua moagem, como melaço, açúcar mascavo, alfenim. Este, uma poesia, é feito com gestos repetitivos, à semelhança do preparo de uma bala de coco, em que a massa é esticada com as mãos.

Ainda que haja um enfraquecimento de tradições, chefs de Alagoas têm dado projeção inédita a elementos simbólicos do estado ao participar de programas de TV e de festivais pelo Brasil.

Um deles é o sururu, um pequeno molusco catado com as mãos em manguezais, na maré vazante. Seu beneficiamento foi registrado pelo Conselho Estadual de Cultura do estado como patrimônio imaterial de Alagoas.

Outro, o siri, é pescado na maré cheia, geralmente com redes ou puçás, peneiras com iscas que atraem o crustáceo. 

Sua carne suave e delicada escondida sob a carapaça é alvo de Jonatas Moreira, cozinheiro jovem e promissor, que estudou na França e trabalhou com Michel Bras, um dos mais prestigiados chefs do mundo. Hoje está à frente do restaurante Akuaba, de sua família, do Espaço Vera Moreira e do Castro Bistrô Bar, todos em Maceió. 

Ele faz uma moqueca de siri fumegante enriquecida com coentro, leite de coco e dendê, que dá cor e aroma à receita a compor uma cozinha que descreve como afro-brasileira, com traços da culinária baiana. Entrega, assim, um pouco da influência que recebe de Salvador, onde nasceu.

Aliás, é curioso o fato de que três dos chefs mais afamados de Alagoas não são nativos, mas estão a celebrar a cultura local. Wanderson Medeiros é da Paraíba e também assumiu, em Maceió, um restaurante da família, o Picuí.

Medeiros aprofundou-se no que chama de “nova cozinha nordestina”, na qual imprime técnicas apuradas para tratar ingredientes locais, servidos com preocupação estética. 

Ele destaca elementos como a carne de sol, cujo preparo parte do contrafilé, que descansa embalado em sal fino. Envolvido em toda a produção, pratica um trabalho antigo e consistente de ensinar as diferenças entre carne de sol, charque e carne seca. 

De sabor suave e interior avermelhado, o “contrafilé de sol” pode receber a companhia de pirão de queijo coalho, que tem produção concentrada em Pernambuco. Sua presença pode sugerir, portanto, que ainda hoje Alagoas mantém um intercâmbio com o receituário desse estado, do qual foi província. 

André Generoso nasceu em Minas Gerais e está há mais de 30 anos em Alagoas, onde toca com seu filho Vitor o Divina Gula, na capital.

Ali, onde já elaboraram receitas como o ketchup de tomate e açaí (em maior proporção), preocupam-se não só com a cozinha, mas com toda a engrenagem que a envolve —usam ingredientes orgânicos cultivados no sítio da família, reciclam lixo e implementaram sistema de economia de água e energia.

Ouriços coletados em São Miguel dos Milagres, na maré baixa, consumidos crus, com limão e sal, ou na brasa. Biscoito de sequilho em formato de concha, recorrente nas cercanias de Maragogi, que recebe o nome de bolo de goma —e de bolo não tem nada. Pitu, um camarão de água doce ou salobra, que aceita preparos diversos, empregado em moquecas e ensopados.

Esses são outros signos que marcam a cozinha alagoana. Não se trata de exclusividades do estado, mas ajudam a dar identidade ao que se cozinha e ao que se come ali, um conjunto ainda obscuro no resto do país, num exercício de extrapolar as fronteiras —imprecisas e imaginárias, aliás, quando o objeto é a comida brasileira.

Fonte: Folha de S.Paulo