Depois de várias idas ao México, somente agora, em meio a uma viagem gastronômica, me aventurei a escapar em direção ao sul da capital, Cidade do México, para o charmoso e efervescente bairro de Coyoacán —tido como um centro altivo, culto e independente.

Tanta aura se explica até visivelmente para o turista: existe ali um colorido particular, que é bem mexicano, mas que na sofreguidão do centro da cidade quase desaparece, e nesse recanto brilha até ofuscar nas lojas, bares e ruas. 

É como uma periferia com o peso cultural da metrópole. Afinal, foi ali que, em meados do século 20, aconteceram certas histórias que marcaram o México e o mundo.

Foi onde ocorreu o encontro de ícones explosivos da arte e da política: o muralista Diego Rivera (1886-1957), a pintora Frida Kahlo (1907-1954), ambos mexicanos, e duas vezes casados; e o revolucionário russo Leon Trotsky (1879-1940) e sua mulher, Natasha Sedova, que ali viveram os últimos anos de exílio até que ele fosse assassinado por um esbirro do ditador Josef Stalin (1878-1953), em 1940. (Stalin já matara outros 38 —dos 40— dirigentes do partido que fez a Revolução Russa de 1917.) Sedova morreria em 1962 na França.

As casas dos casais hoje são museus, pontos de peregrinação de quem aprecia arte e (como o casal Rivera, inclusive) se interessa por política e pela história do México.

Frida morou na Casa Azul, hoje museu que leva seu nome, desde que nasceu, e ali viveu com o marido Diego Rivera e manteve seu ateliê (o dele ficava em outro local).

Distante (ou próximo) cinco quadras fica a casa para onde o casal Trotsky mudou depois de um período hospedado na casa de Frida e Diego. O casal de artistas mexicanos os recebera em 1938 quando chegaram ao México exilados.

Naquele momento, Frida e Rivera apoiavam a defesa de Trotsky de uma sociedade verdadeiramente comunista, em oposição à ditadura monstruosa em que Stalin tinha transformado a União Soviética.

A convivência dos quatro personagens (que pode ser vislumbrada num precioso vídeo de época) sofreu uma turbulência com a erupção de um romance entre Trotsky e Frida.

A situação teria ficado mais do que desconfortável para os cônjuges de ambos, apressando a mudança do revolucionário para a outra casa ali perto.

Estremecida, a convivência entre eles já trouxera ao menos um lindo fruto para a arte e para a política, muito pouco conhecido: um manifesto chamado “Por uma Arte Revolucionária Independente”.

Redigido ao longo de encontros em Coyoacán em 1938, ele foi lançado publicamente por Diego Rivera e pelo escritor surrealista francês André Breton, e concebido junto com Trotsky, que no entanto preferiu não assiná-lo. 

Explica-se: o manifesto, que denuncia o aviltamento da arte no capitalismo, igualmente execra sua manipulação política pelo “fascismo hitlerista” e pelo “regime totalitário da União Soviética” (para os quais a arte era mero instrumento de propaganda política).

O manifesto prega que a arte tem que ser livre e que só será revolucionária se for independente. Para não marcar o documento com uma coloração política, ele preferiu não colocar seu nome (pois, assinado apenas pelos dois grandes artistas, não seria facilmente tachado apenas como manifesto trotskista).

O documento ilustra o espírito libertário que uniu aquelas duas casas.

O museu de Frida transpira arte e cor; um sofrimento transmutado em imperiosa independência, em força vital, em telas assertivas. Seu leito de morte, cercado de quadros e livros, tem à frente uma fotografia emblemática, onde Lênin discursa num palanque ao lado do companheiro Trotsky.

A foto ficou famosa na versão falsificada por Stalin, impressa nos livros oficiais da ditadura. Trata-se exatamente da mesma foto, mas com a imagem de Trotsky apagada.

O museu de Trotsky transpira luta e perseverança, mas também angústia: a casa toda cercada por muros altos, janelas bloqueadas, guaritas, e um mobiliário espartano. 

Na área da residência não há (não vi) imagens de Frida, nem explosão de cores, somente de tiros (de um primeiro atentado) cravados nas paredes. Mas há um jardim, que voltou a ser habitado pelos coelhos dos quais se ocupava o revolucionário.

Nos dois imóveis, há Coyoacán, com a mesma altivez antiga e olhar no futuro que a gente sente caminhando por ali.

Fonte: Folha de S.Paulo