Muita gente tem no currículo alguma viagem de avião, carro ou ônibus. Menos pessoas podem dizer que já rodaram por aí de moto ou bicicleta. Mas são poucos os que têm a experiência de viajar a cavalo.

A primeira grande viagem do jornalista e caubói Filipe Masetti foi de Calgary, no Canadá, a Barretos, no interior paulista, quando percorreu 16 mil km. O segundo trecho foi de Barretos a Ushuaia, na Argentina, e foram 7.500 km. Na sequência, ele cavalgou 3.500 km de Fairbanks, no Alasca, a Calgary.

Ao todo, Masetti viajou mais de 25 mil km por 12 países e chegou a escrever dois livros sobre suas expedições: “Cavaleiro das Américas”, sobre a sua primeira viagem, e o recém-lançado “Cavaleiro das Américas rumo ao Fim do Mundo”, sobre o trajeto Brasil-Argentina.

Abaixo, um trecho do livro sobre a temporada de incêndios que o brasileiro enfrentou na Argentina, em janeiro de 2017.

Em tempos de coronavírus nossas viagens ficaram mais restritas. Mas ainda podemos relembrar momentos marcantes que tivemos em outras cidades. Que tal compartilhar sua história de viagem com o blog Check-in? É só escrever para o email [email protected].

*

Depois de descansar por duas horas, selei os garotos de novo e continuei rumo a Médanos, a apenas dez quilômetros ao oeste. Minha anfitriã havia me alertado dos terríveis incêndios a frente.

A fumaça enchia o ar e o céu brilhava com um laranja estranho. Sabia que os incêndios florestais estavam queimando a província de La Pampa desde o Natal, mas não sabia que haviam chegado à província de Buenos Aires.

Quando cheguei a Médanos, era como se tivesse entrado em um filme apocalíptico. Respirar virou uma batalha com a fumaça cinza me sufocando e os cavalos também. O céu parecia estar em chamas.

“A essa altura, não sabemos se você conseguirá cavalgar amanhã, filho”, um gaúcho grande, amigo do Luis de Bahía me falou. “A rodovia está fechada por causa do incêndio que queima nos dois lados.”

Quando tirava as selas dos garotos, sirenes berravam, convocando todos os bombeiros voluntários para o quartel dos bombeiros. As sirenes eram altas e agudas, como aquelas usadas para alertar moradores das ilhas de um possível tsunami.

Meu coração pulou para a garganta. Estava preocupado com minha vida e a dos cavalos. Tomei a decisão errada ao cavalgar a oeste, para Bariloche?

Um jornalista, que veio tirar fotos nossas, contou aos gaúchos que me receberam que “duas mulheres foram queimadas vivas dentro do carro uma hora atrás.

Elas tentaram dar meia volta na rodovia porque não conseguiam ver nada com a fumaça densa. Um caminhão as atingiu quando faziam o retorno e as jogou dentro do fogo”.

Olhamos o céu ameaçador em silêncio, com tristeza e medo. Naquela noite, meu anfitrião, um cavaleiro de 70 e poucos anos, com cabelo grisalho espetado como um porco espinho, ofereceu-me um churrasco e umas garrafas de vinho.

Naquela região da Argentina, o vinho tinto é bebido com algumas pedras de gelo e água tônica. Achei estranho no começo. Porém, depois de beber a mistura várias vezes aprendi a apreciá-la, sobretudo nos dias de calor escorchante na sela.

Na manhã seguinte acordamos cedo e meu anfitrião me levou até os cavalos. “Liguei para o meu amigo, chefe de polícia”, disse o senhor. “Ele me avisou que o fogo queimou tudo adiante. Não há mais nada para ser queimado, então você pode cavalgar em segurança.” Não tinha certeza se essa notícia era boa ou má.

Saí de Médanos cavalgando com a fumaça densa empesteando o ar e os meus pulmões enquanto o vento soprava cinzas por todo lado. O chefe de polícia estava certo, o fogo havia queimado todo terreno adiante e não havia nada mais para pegar fogo.

Mas o sofrimento e a desolação eram imensos, era um cenário do apocalipse. Carcaças carbonizadas de vacas, pumas e tatus por todo lado. O cheiro podre, azedo, nauseabundo me forçou a prender a respiração para não vomitar.

As expressões paralisadas de sofrimento do gado partiram meu coração. Línguas para fora, bocas abertas, olhos arregalados. Muitas vacas tentaram fugir e ficaram presas. Estavam queimadas, emaranhadas na cerca.

As autoridades estimam que mais de 80.000 cabeças de gado foram mortas e mais de dois milhões de hectares de terra, queimados. Cavalos, cachorros e casas também foram perdidos nos incêndios causados por tempestades de raios e espalhados pela seca dos últimos anos e ventos fortes.

“Tentei soltar meus cavalos a tempo, mas quando cheguei à cabanha era tarde demais”, um gaúcho me contou. Uma lágrima solitária deixou uma marca ao descer por seu rosto empoeirado.

Por 170 quilômetros, a fumaça bloqueava o céu, o sol se infiltrava por ela, um laranja profundo sobre nós. Os cavalos e eu lutávamos para respirar enquanto os ventos fortes sopravam fumaça e cinzas em nossas caras o dia inteiro. Meus olhos ardiam e o fundo da minha garganta queimava.

Nos dois lados da estrada onde antes havia um tapete de pasto alto verde, amarela e marrom, agora havia troncos negro e uma camada de cinzas. Parecia que o mundo havia partido Cavaleiro das Américas rumo ao Fim do Mundo 181 sua cor. Seu brilho. Tudo ao meu redor era preto e cinza.

Na noite anterior à nossa chegada a Río Colorado, eu tinha apenas uma garrafa de 500 ml de água. Achei um curral aberto onde armei minha barraca, soltei Sapo e Picasso e bebi minha água devagar. Com lábios ressecados e a garganta seca, queria virar a garrafa, mas sabia que iria precisar dela no dia seguinte.
Sentindo-me totalmente vulnerável e mais sujo que um limpador de chaminé, vi uma velha caminhonete se aproximar e estacionar na frente da porteira. Um homem alto com a cara fechada saiu dela.

“Quem deixou você entrar?”, perguntou ao se aproximar. “Ninguém, senhor”, respondi. “Vi que a porteira não estava trancada e entrei.” Enquanto contava a ele sobre a minha viagem, ele me olhava de cima a baixo em silêncio. “OK, acho que você pode passar a noite aqui, mas se o dono aparecer, diga a ele que falou comigo.”

Aliviado, a tensão em meus ombros relaxou. Perguntei se poderia beber água do moinho próximo. Ele disse que não por causa do nível de sulfato. Apertamos as mãos e ele foi até sua caminhonete enquanto eu segui para minha barraca com a cabeça baixa. Olhava para o solo pedregoso quando ouvi um grito.

Quando olhei para cima, o homem que dois minutos antes eu achei que me devoraria vivo segurava uma garrafa de um litro de água congelada em sua mão. Corri, peguei a garrafa e agradeci a ele. Mais tarde, sozinho, sentado em minha barraca vendo os cavalos pastar, chorei em silêncio, segurando aquela garrafa gelada junto a minha bochecha esquerda.

O plástico gelado foi um alívio momentâneo para minha pele queimada. Era apenas água. Parecia ridículo alguém chorar sobre um litro de água congelada, mas estava muito desesperado momentos antes.

Quando se está com sede, quando sofre seus efeitos, aprende-se que a água é o recurso mais importante do planeta. Água é vida.

*

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Fonte: Folha de S.Paulo