A pandemia da Covid-19 deu uma chinela traiçoeira no setor de bares e restaurantes –lugares de altíssimo trânsito se saliva, pois mui perigosos.

Todo mundo apelou para a entrega de comida (o dito delivery) na tentativa de sobreviver. Funciona legal em alguns casos, pessimamente em outros. A seguir, alguns casos em que a transição para o delivery ficou esquisita.

 

Chinês de caixinha no Dia dos Namorados

A comida chinesa em caixinhas de papelão tem um nome a zelar –na real, mais por aquilo que a gente vê em filmes americanos do que no cotidiano das cidades brasileiras. De qualquer forma, o delivery chinês é uma instituição sólida da comida tosca nacional desde, pelo menos, os anos 1990. Merece algum respeito.

A despeito disso, há anos-luz a separar um jantar romântico ideal de uma porção de yakissoba com brócolis, frango e glutamato monossódico –ao contrário do que tenta nos convencer a rede China in Box.

Até um misto frio é mais sexy. Ou pipoca de micro-ondas.

Churrascaria rodízio

Se existisse um antônimo para “delivery”, bem poderia ser “rodízio”. Enquanto a entrega larga a comida e um bilhete de “se vira”, o espeto corrido só falta escovar os dentes do freguês depois do serviço.

A pandemia da Covid-19, entretanto, obrigou churrascarias que operavam com rodízio a se aventurar na comida para viagem. O resultado, previsível, ainda se mostra desastrado.

Além da rendição às carnes com acompanhamentos e tal, como no esquema normal de um restaurante, há a venda de churrasco por peso e o infame “kit churrasco”, composto por carnes cruas e firulas que encarecem o combo.

Mal sabem os rodízios que essa demanda é suprida há milênios por outro tipo de estabelecimento: o açougue.

 

Luxo total

Outro nicho da gastronomia que precisou sambar foi a alta restauração. Marmitas e quentinhas para viagem sempre foram uma questão tabu nas casas luxuosas.

(Lembro-me da primeira vez em que, jovem e um pouco menos miserável do que hoje, fui jantar no finado Antiquarius, restaurante português fino no trato e pesado na conta, na alameda Lorena. Sobrou um tantão da comida caríssima, e eu pedi para levar. Não me trouxeram à mesa o marmitex, mas a nota veio. Achei que meu pedido havia sido ignorado, até descobrir um aromático bacalhau no banco traseiro do meu Golzinho verde-musgo. Eu fora poupado da terrível exposição de pobreza de um homem que carrega restos de comida pelo salão.)

Ironicamente, a marca Antiquarius hoje tenta se reerguer no Rio como serviço de entrega. Vai precisar baixar a bola e os preços.

Outros restaurantes carões também investem no delivery, com uma irresponsabilidade ambiental que dá vontade de gritar: cada elemento do prato numa embalagem própria, uma montanha de lixo.

Chef entregador

Para promover o próprio negócio, alguns chefs famosinhos têm entregado eles mesmos a comida, como forma de atrair a simpatia de um “serto” público. Já avisei ao meu porteiro que não é para deixar subir o sushiman reaça.

Comida faça-você-mesmo

Tem na churrascaria, tem no restaurante carãozão, tem em outros lugares com comidas que viajam mal à beça, como frituras: você recebe a comida semicozida (semicrua) para finalizar em casa.

Tem japonês que entrega macarrão cru de lámen. Tem hamburgueria que envia a carne cria e o pão. Outra vez, algo de que o açougue já dá conta há milênios.

Gentesszss, cozinhar de verdade é bem mais barato e muito mais divertido.

Lanche de posto de estrada

Parada rodoviária serve para esticar as pernas e tirar água dos joelhos. A comida se encaixa no combo das necessidades fisiológicas, vista a absurda relação custo benefício da comida nesses postos.

Pedir espeto de frango seco-oleoso no aconchego do lar simplesmente não tem sentido.

Boteco em casa

Dói muito constatar isso, mas boteco e entrega não têm nada a ver. Você pode até matar a saudade de uma comida especialmente boa –como eu matei da feijoada do tradicionalíssimo Filial. Mas o boteco em si, o espírito do boteco, é algo que não viaja. É o garçom, é o papo, são as risadas. Bar é muito mais do que bebida e comida.

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Fonte: Folha de S.Paulo