Eu cogitei ir para a rua na manifestação de domingo. Quase fui, mas acabei não fondo. No fundo, sempre soube que não iria. A raiva ainda não me fez atropelar aquilo que um amigo bem define como “instinto de autopreservação que beira a covardia”. Ou, para parecer nobre na biografia, o senso de responsabilidade.

O establishment bolsonarista –vráááaáááá, como é bom cuspir esse termo!– quer nos fazer sair de casa para anular qualquer presunção de superioridade moral. Parte da oposição mordeu a isca, o que, na opinião do ilustríssimo colega MAG, é um erro de estratégia e uma falta moral.

Não sei. Concordo com o xará até a terceira cerveja. Depois o sangue sobe às têmporas.

Apertar o foda-se (em paráfrase aos desabafos de Augusto Heleno e Gabriela Pugliesi) é jogar o jogo do inimigo. A pergunta que atormenta é: dada a configuração do tabuleiro, há chance de vitória com outro jogo?

A nossa inércia também favorece o adversário, talvez ainda mais do que responder às numerosas provocações. Mas falemos de comida.

Há no ar uma sensação de que o isolamento se tornou insuportável, a despeito de qualquer análise racional. O sentimento contamina autoridades estaduais e municipais, que aposta alto com as vidas dos cidadãos na expectativa de não serem dizimadas politicamente. Na prática, tudo está voltando a funcionar mais ou menos como antes, porque a população está desesperada.

O Rio de Janeiro já liberou o funcionamento de bares e restaurantes, seguindo o exemplo de outros estados com menos participação no PIB nacional. Na capital, a prefeitura mantém a ordem de fechamento, o que causa curto-circuito na cabeça dos comerciantes. Qual ordem vale? Tem boteco aberto e boteco fechado por medo de multa.

Em São Paulo, a coisa também começa a sair de controle. O setor ensaia agir com o fígado, asfixiado pelas restrições sanitárias. Hoje vi um food truck em plena operação, com o dono no figurino clássico da pandemia: máscara no queixo –as luvas, sejamos justos, sempre foram usadas pelos restaurateurs ambulantes.

Personagem importante da gastronomia paulistana, Edrey Momo (dono das pizzarias 1900 e da operação brasileira da lisboeta Tasca da Esquina) publicou, também hoje, um longo manifesto (leia íntegra aqui), replicado por chefs e outros atores do setor, com um trecho que destaco abaixo:

“Não consigo minimamente encontrar nenhum sentido lógico para supermercados, bancos, farmácias e agora escritórios e concessionárias, poderem ‘abrir’ e um restaurante não.

Tenho certeza que podemos ser mais seguros e controlados que qualquer um dos negócios que citei afinal higiene e segurança alimentar fazem parte do nosso ‘habitat’.”

Corro o risco de perder o respeito e a amizade do Edrey (a promiscuidade é uma praga no jornalismo de comida), mas não posso deixar de apontar seu contorcionismo retórico.

Restaurantes são um foco crítico de contaminação porque envolvem: socialização (com aglomeração, em situação normal), com contato interpessoal e gotículas de saliva em livre circulação e; ingestão de comida e bebida, potencialmente contaminadas por essa saliva, que pode vir também da cozinha ou do serviço.

Muito, mas muito mais perigoso do que uma revenda da Nissan. Higiene e segurança alimentar integram a cultura dos restaurantes exatamente por causa do enorme risco sanitário desse tipo de operação. E das numerosas vezes em que o desrespeito a essas regras causou tragédias.

Todos os setores da economia estão muito mal. Tentemos não agir com as entranhas, tentemos pensar no coletivo antes de nós mesmos.

É o momento mais crítico da epidemia até o presente. Abrir restaurantes agora será trágico. Podemos evitar essas mortes todas.

(Siga e curta a Cozinha Bruta nas redes sociais.  Acompanhe os posts do Instagram, do Facebook  e do Twitter.)

Fonte: Folha de S.Paulo