Os evangélicos são um dos poucos segmentos da sociedade que têm demonstrado em pesquisas eleitorais uma preferência consistente por Jair Bolsonaro (PL).

No último levantamento do PoderData, o atual presidente registrou 52% das intenções de voto desse grupo, contra 31% de Lula. Considerando toda a sociedade, Lula está à frente, com 44% contra 37%.

O cientista político Vinícius do Valle, diretor do Observatório dos Evangélicos, cita a atuação da primeira-dama Michelle Bolsonaro como um dos trunfos da campanha do atual presidente nesse setor.

Muitas evangélicas se veem na posição da Michelle porque vivem uma experiência semelhante no seus lares: são casadas com homens que não vão à igreja ou até vão, mas têm uma postura muitas vezes violenta, muitas vezes agressiva. Essas mulheres estão na igreja orando, tentando fazer de tudo para converter os seus maridos. Há uma identificação dessa mulher com a figura da Michelle“, afirmou o doutor em ciênci política pela USP em entrevista ao Poder360.

Assista à entrevista completa com Vinícius do Valle (29min58seg):

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Vinícius, que pesquisa o tema há 10 anos, destaca que um trunfo adicional é o fato de Michelle Bolsonaro, de fato, falar a língua dos evangélicos.

O autor de “Entre a Religião e o Lulismo” diz ver um risco para a campanha de Lula quando ela responde a críticas nesse segmento. “É um campo em que o Bolsonaro se sente mais confortável em jogar. A campanha do Lula resolveu encarar porque viu que estava perdendo eleitores importantes Mas é um jogo arriscado”, disse.

O segmento evangélico passou de 15,4% da população no Censo de 2000 para 22% no de 2010. Embora ainda não haja um Censo, pesquisas estimam que ele corresponda a 28% do eleitorado atual.

Esse crescimento, diz Vinícius, mostra que será inevitável que pautas de cunho moral sejam colocadas cada vez mais no debate político. Isso, avalia, pode colocá-las em choque as pautas da esquerda de defesas de minorias como os homossexuais ou o feminismo.

Leia abaixo a entrevista editada:

Poder360 – Os evangélicos participam da política no Brasil desde a década de 80. O que mudou de lá pra cá?

Vinícius do Valle – A maior mudança é quantitativa. A presença dos evangélicos é maior e, consequentemente, o poder de barganha desse segmento vem crescendo a cada eleição. Em termos qualitativos, há um quadro  semelhante ao do começo dos anos 80. As lideranças evangélicas, principalmente do campo do pentecostalismo, estão reunidas para fazer contraponto a setores organizados da sociedade no campo da esquerda. Estamos falando de movimentos feministas, LGBTs, movimentos sociais.

De maneira geral, é a mesma composição política, o mesmo perfil, mas um volume muito maior. Nos anos 80 eram minoritários e agora estão chegando a 30% da população. Se esse ritmo  for mantido, dentro de pouco mais de uma década, vamos ter a maior parte da sociedade brasileira evangélica. É uma mudança e tanto.

Qual é o impacto disso? Mais espaço no debate político para as pautas morais?

Acredito que sim. Principalmente as relacionadas à família, sexualidade, violência e uso de drogas. Esses são alguns eixos que os evangélicos se posicionam de forma bastante atuante. Também a pauta do aborto.

Na pauta econômica já não existe uma união tão forte nesse grupo. A gente vê, na verdade, setores desse grupo com uma pauta mais à esquerda, outros com uma pauta mais ligada à liberdade econômica.

O eleitor evangélico também é mais pobre. Há aí uma dicotomia entra a pauta moral e a econômica. Como isso se resolve?

Essa dicotomia é o que chamo no meu doutorado de pressões cruzadas. De um lado, a pauta econômica levando a uma identificação política mais à esquerda. Do outro lado, pautas morais, as indicações dos pastores, levando para um posicionamento político mais conservador.

Observei que a pauta dos costumes tem uma preeminência nas eleições legislativas, enquanto a econômica acaba ganhando espaço para a escolha dos candidatos no Executivo.

Isso, de certa forma, foi um pouco bagunçado com o bolsonarismo, porque a gente viu setores evangélicos importantes apoiando a eleição do atual presidente em 2018. Desde então a gente viu uma aliança muito forte do setor com o presidente Bolsonaro e isso tem influenciado bastante o quadro político.

O segmento evangélico é um dos poucos setores na sociedade destoando do quadro geral e colocando uma preferência política nítida para o Bolsonaro. E isso, de certa forma, representa uma  mudança.

Como isso se dá na atual disputa eleitoral?

Um livro lançado recentemente pelo cientista político Vitor Araújo mostra que a pauta moral tem uma aderência muito mais forte entre os evangélicos do que entre o restante da população, o que não quer dizer que a pauta econômica não seja importante.

A gente tem visto setores próximos ao presidente chamando o ex-presidente Lula de demônio, de alguém que vendeu sua alma para ter o poder. Por sua vez, Lula entrou nesse jogo e também chamou Bolsonaro de fariseu. Disse que se tem alguém que é possuído pelo demônio, esse alguém seria o Bolsonaro. Ou seja, ele comprou essa agenda.

Isso vem causando efeitos sociais negativos, porque a gente está falando de intolerância religiosa. Quando o ex-presidente Lula é associado ao demônio e a evidência disso é a presença dele em espaços de religiões de matriz afro brasileira, há a associação dessa matriz religiosa com a figura do mal. E isso aumenta uma intolerância religiosa que já vem crescendo. A gente vê pais de santo serem expulsos de comunidades. A gente vê terreiros sendo invadidos.

Eleitoralmente, é um tipo de agenda que tem certa aderência, principalmente nos grupos evangélicos pentecostais que têm na sua base teológica essa questão da guerra do bem contra o mal como algo central.

Não é perigoso para campanha de Lula entrar nessa seara? Uma estratégia arriscada?

Acredito que sim. Quando a gente fica nessa disputa de quem é mais religioso, o Bolsonaro está cercado dos principais líderes das principais denominações desse campo [evangélico]. É uma competição em que o Lula entra em campo adversário. É um campo em que o Bolsonaro se sente mais confortável em jogar.

Sem dúvida, representa um risco. A campanha do Lula resolveu encarar, pelo menos num determinado momento, porque viu que estava perdendo eleitores importantes. Resolveu criar uma barreira para deixar de perder esses votos [evangélicos]. Mas é um jogo arriscado.

Qual o papel da primeira-dama Michelle Bolsonaro nisso? Há uma perspectiva de que ela ajude Bolsonaro a se converter?

Acredito que sim. Bolsonaro tem uma caracterização religiosa fluida. Foi batizado pelo Pastor Everaldo em Israel, mas é católico de formação. Frequenta cultos com a mulher dele, Michelle. Também vai para Aparecida e recebe uma imagem da santa [o que é condenado entre os evangélicos]. Consegue circular entre diferentes segmentos.

E ele tem essa figura mais grosseira, mais enfática, que é vista por muitos evangélicos como uma postura que não reflete uma conduta cristã. A Michelle aparece ali, suavizando esse lado dele.

Muitas evangélicas se veem na posição da Michelle porque também vivem uma experiência semelhante em seus lares: são casadas com homens que não vão à igreja ou vão, mas têm uma postura muitas vezes violenta, muitas vezes agressiva. Essas mulheres estão na igreja orando, tentando fazer de tudo para converter os seus maridos. Há uma identificação dessa mulher com a figura da Michelle.

Para além disso, a Michelle tem um ativo muito importante para esse grupo: o fato de ser realmente uma evangélica e falar a língua que essas pessoas estão acostumadas, com a prosódia, a performance que essas pessoas estão habituadas.

Quando a Michele ela vai num culto e pega o microfone, os evangélicos dizem “eu me reconheço”. Isso é muito difícil de ser reproduzido por alguém que não é desse meio, sem soar artificial.

É um pouco aquela frase que eu gosto de dizer que “quem é de verdade sabe quem é de mentira” [citação da música “Pontes Indestrutíveis, de Charlie Brown Jr.]. A Michelle realmente está nesse meio e fala como alguém que os evangélicos reconhecem. É um ativo eleitoral importante, cria uma conexão direta com esse público.

A Michelle resolveu entrar na campanha fazendo isso de forma muito intensa. As pessoas estão notando a primeira dama e se identificando com ela e com com o que ela diz dentro das igrejas. Isso explica, em parte, Bolsonaro ganhando terreno dentro desse segmento religioso.

E a estratégia do Lula entre os evangélicos?

Talvez a principal frente seja a de quebrar a ideia de que há um consenso entre os evangélicos em prol do Bolsonaro. É muito importante o contraponto.

Outra frente é dizer que há uma politização excessiva das igrejas e que elas estão se posicionando como partido político. Isso é algo que os evangélicos têm dito. Há um incômodo dentro desse segmento. Não é a maioria, mas é um número considerável de evangélicos que ficam irritados com essa excessiva politização. O Lula está se conectando com essa camada.

Como o crescimento das pautas morais na sociedade brasileira pode se chocar com as pautas cada vez mais ligadas ao identitarismo da esquerda?

Essa não é uma equação fácil. A gente vê segmentos da esquerda e evangélicos atuando de forma bastante polarizada, independentemente de eleição. Estão defendendo pautas opostas.

Acredito que é possível incorporar algumas dessas pautas, ressignificando pontos delas. Por exemplo, trabalhar com a noção de família sem ser apenas a partir da chave do casamento homoafetivo ou do casamento heteronormativo. É possível defender a pauta da vida sem levá-la apenas a partir da questão do aborto. Puxar para temas que a esquerda discute, como os mais vulneráveis, os mais oprimidos da sociedade.

Mas, para isso, a esquerda também precisa mudar a sua forma de atuação no cenário político e se propor a fazer essa ressignificação. A gente não tem uma sinalização de que há grupos tentando fazer isso, mas essa é uma necessidade que vai ser colocada se o campo político da esquerda quiser ampliar a sua margem de atuação e o seu potencial eleitoral.

Fonte: MSN

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