BRUNO GHETTI
RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – No universo distópico do filme “Crimes do Futuro”, de David Cronenberg, as pessoas quase não sentem mais dor. Consequentemente, nem prazer. Diante disso, um homem aceita cultivar em seu próprio organismo tecidos cancerosos e até novos órgãos sem a menor função –para depois se submeter a sessões públicas de retirada desses apêndices incômodos de dentro de si. Tudo nas mãos de uma artista de vanguarda, que torna a performance altamente sexual, deixando a plateia em êxtase. Uma espectadora resume que “a cirurgia é o novo sexo”.

Já em “Até os Ossos”, de Luca Guadagnino, em cartaz nos cinemas, todo o enlace dos outsiders de Timothée Chalamet e Taylor Russell é costurado por canibalismo. Enquanto o casal cai na estrada e vai se aproximando, deixa para trás uma trilha de corpos mutilados. Em uma das cenas, o personagem de Chalamet corta a garganta de uma vítima, que logo será devorada em um matagal.

Em “Titane”, de Julia Ducournau, o corpo implantado com uma placa de titânio se ultrassexualiza e entra em degradação após o coito com o carro. E na série “Dahmer”, um serial killer encontra prazer no ato das matanças e de comer quem assassinou.

Esse tipo de abordagem sobre o corpo humano, em seu estado mais bruto, em que um físico geralmente tido por abjeto repentinamente funciona como combustível erótico, não é uma novidade, sobretudo na carreira de Cronenberg, mas diversas obras audiovisuais recentes parecem ter enveredado por caminhos semelhantes. Captam a atenção ao explorar o organismo em imagens não raro chocantes, usando vísceras, fluidos corpóreos, feridas e mesmo carne humana como estimulantes para sugerir erotismo.

Em comum, há um tipo de sexualidade nada corriqueira, extrema, envolvendo o corpo humano em estados que passam longe do tido como excitante no sexo mais convencional. É uma fisicalidade mostrada em cenas esteticamente excessivas, com poder de atordoar e estimular os sentidos do espectador. Para muitos, o mero ato de observar essa corporeidade extrema talvez já seja, em si, o novo sexo.
O mundo dos anos 2020 pode não ter eliminado, como sugere Cronenberg, a dor do humano –pode apenas a ter aumentado–, mas, ao que parece, limitou sua capacidade de ter prazer. Não por carência, mas por superabundância de estímulos.

O filósofo alemão Christoph Türcke, professor emérito da Academia de Belas Artes de Leipzig, na Alemanha, já havia cantado a bola em 2010, quando as redes sociais engatinhavam e a oferta de produtos audiovisuais na internet ainda era mínima, comparada a uma década depois.

No livro “Sociedade Excitada: Filosofia da Sensação”, publicado naquele ano e lançado aqui pela editora da Unicamp, Türcke mostra o mundo capitalista como refém de constantes estímulos sensoriais gerados sobretudo pelo desenvolvimento tecnológico. A publicidade, as vitrines das lojas, os programas de TV, os jogos de videogame, os filmes em cartaz –tudo em luta constante para capturar a atenção e sensações do indivíduo-consumidor. Com o tempo, as pessoas se acostumaram à profusão de incitamentos, indiferentes, ou se entediaram na ausência desses estímulos. Hoje, precisam de mais, como um vício.

“É um bombardeio sobre uma sensibilidade tão absorvida e exausta pela imensa quantidade de estímulos audiovisuais intrusos que não mais reage atentamente. A não ser quando irritada por choques”, afirma Türcke, em entrevista. “Choques que proporcionam um prazer especial ao espectador. O prazer de participar de modo voyeurista do ferimento do tabu e da transcendência dos limites para o proibido.”

O filósofo pensa que o livro foi profético. “Não exagerou a realidade, a realidade é que o exagerou”, diz, lamentando que o processo de dependência humana das pequenas excitações, com os anos, se intensificou ao ponto de hoje –sobretudo após a massificação do smartphone, máquina de exaurir o sensorial humano.

“Na época que o livro foi escrito, observei crescimento significativo de piercings e tatuagens. Pessoas inundadas e distraídas por estímulos audiovisuais fluidos sentiram necessidade de manter algo, de viver impressões sustentáveis, de vivências profundas. É essa necessidade que as fez incrustar figuras ou implantar coisinhas metálicas na própria pele, apesar da dor liberada por isso –ou até por causa dela”, diz o filósofo.

É claro que a maioria das pessoas não chega ao ponto de praticar em si mesma tais incisões, mas parte expressiva delas parece interessada em, ao menos, observar nas telas outros indivíduos tendo as tais “vivências profundas” a que o professor Türcke se refere. Essa já é, por si só, uma maneira de ter contato com experiências menos transitórias, mais acentuadas.

O espectador contemporâneo parece mesmo se entregar a um diálogo com um produto audiovisual quando ele lida com temas menos convencionais e quando há tratamento estético da obra com exacerbação formal, sem comedimento no uso de imagens e sons. Nesses casos, costuma haver contusão maior, uma fala aguda aos sentidos do público, que se põe a pensar sobre o filme de modo como talvez não fizesse se o regime de representação fosse discreto ou tradicional.

Mariana Baltar, professora da pós-graduação em cinema e audiovisual da Universidade Federal Fluminense, acredita que há uma tendência em filmes recentes de fazer um uso estético expressivo do corpo humano, acentuado por vários procedimentos que a linguagem mais clássica enquadraria como “acima do tom”.

Ela chama de “modo de excesso” toda estratégia estética em que o uso excêntrico de maquiagem, cenários, iluminação, angulações de câmera, música e efeitos sonoros se dá para exacerbar situações que ressaltam a fisicalidade dos personagens, para operar no público respostas sensoriais fortes. E que seja capaz de convocar o espectador ao filme de maneira mais intensa que narrativas de natureza acadêmica.

“A intensificação explícita do corpo em estado de tensão, como se estivesse no extremo, de alguma forma tenta emular a experiência que a gente tem atualmente, das incertezas. Os momentos de crise sempre pedem descarga sensorial”, diz Baltar.

Coordenadora do NEX, Núcleo de Estudos do Excesso nas Narrativas Audiovisuais, específico ao tema, ela julga que a corporeidade é essencial nos filmes que se valem do excesso como ferramenta para despertar respostas intensas do espectador.

“A presença dessa visceralidade é resposta sensível ao contexto maior em que o corpo parece ser mais premente e presente. Isso não é novo, é teorizado desde o século 19. Mas, na contemporaneidade, tem características singulares, vinculadas à hipertrofia da vida privada e o constante apelo ao estímulo sensorial que reforça a centralidade do corpo.”

O uso expressivo do corpo no cinema existe desde muito tempo. A influente teórica americana Linda Williams, aliás, destaca três gêneros cinematográficos como “do corpo” –o melodrama, o pornô e o horror. Em todos, a fisicalidade humana historicamente tendeu a ser explorada de maneira exagerada, até caricata.

No melodrama, há o descontrole gestual e o choro da tristeza. Na pornografia, os espasmos corporais do orgasmo. E, no terror, mutilações ocasionadas pela violência física. Nos três, os líquidos corpóreos ganham destaque. Para reforçar a noção de melancolia, os melodramas destacam as lágrimas; a pornografia intensifica o gozo investindo na visibilidade de esperma, umidificações e suor; e o terror, para assustar, explora o jorrar de sangue.

Mas o emprego do abjeto com conotação mais sexual surgiu no horror. Carlos Primati, especialista em cinema fantástico e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema, explica que, até os anos 1960, o gênero era voltado ao público jovem e era impedido de abordar algo mais ousado ou considerado mais adulto pelo Código Hays, que impunha regras moralistas de conduta e de temas nos longas hollywoodianos.

“Isso vai acontecer primeiro longe de Hollywood, com o cinema europeu, onde filmes de horror que surgiram a partir da década de 1960 sempre foram direcionados a plateias maduras, em tema e conteúdo”, diz.

“Um dos primeiríssimos a provocar uma sensação de atração e repulsa ao mesmo tempo diante de um belo cadáver, por assim dizer, foi ‘A Maldição do Demônio’, de 1960, de Mario Bava, na cena que o corpo da bruxa vivida por Barbara Steele se regenera até recuperar sua forma viva.”

Segundo Primati, a partir de então outros filmes atrelaram elementos eróticos a banhos de sangue e exposição de vísceras, até chegar aos casos extremos –o terror “Nekromantik”, de 1988, de Jörg Buttgereit, mostra um homem com tal nível de necrofilia que tem uma ejaculação amazônica quando se mata.

Tais elementos repulsivos e sexuais aos poucos também abandonaram o nicho do horror e foram incorporados ao cinema geral, servindo projetos estéticos de grandes cineastas, como Pier Paolo Pasolini, Nagisa Oshima e o próprio Cronenberg.
Mas é na França dos anos 2000 que se nota uma real tendência ao uso desses corpos extremos em filmes autorais, como “Baise Moi”, de 2000, de Virginie Despentes, e “Trouble Every Day”, de 2001, de Claire Denis. Em seguida, ela se espalhou pelo mundo, e não raro a partir de uma perspectiva curiosamente feminina ou LGBTQIA+, em que a fisicalidade abjeta ganha outro significado, de natureza alegórica e política.

O cineasta brasileiro Gustavo Vinagre se destaca nessa área, nunca escondendo sexualidade crua e não normativa em sua obra. Fosse nas cenas de cópula reais –desempenhadas por ele próprio– no média-metragem “Nova Dubai”, de 2014, ou no zoom literalmente proctológico de um canal retal em “A Rosa Azul de Novalis”, de 2018, o cineasta diz nunca calcular cenas feitas unicamente para chocar. “Confesso que não sei também exatamente a razão [de inserir cenas de sexualidade intensa]. São coisas naturais para mim que ponho nos meus filmes. Se choca ou não, aí é do espectador”, ele diz.

Galeria Veja cenas de ‘A Rosa Azul de Novalis’ Marcelo é um HIV positivo na faixa dos 40 anos que vive em uma casa decorada com pôsteres de Hilda Hilst e de Maria Callas https://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/1653312094407308-veja-cenas-de-a-rosa-azul-de-novalis * Mas existe inequivocamente um viés político em sua estética. Em sua obra, a exibição de um corpo extremo chega ao paroxismo no documentário em cartaz “Deus Tem Aids”, que Vinagre dirige com Fábio Leal, mostrando como portadores de HIV lidam com o vírus hoje em dia. Há uma cena em que Paulx, performer que se trata no gênero neutro, se submete a um exame de sangue, inserindo o líquido recém-saído de sua veia em seu próprio ânus.

O procedimento é chocante e, segundo Paulx, no filme, se presta ao “hackeamento de imaginários”, que consiste em “captar uma imagem pornográfica e entrar na cabeça de outros que não buscavam aquilo”.
“É uma performance que mistura sexualidade, HIV, pulsão de morte. Mas também uma de vida, com escárnio, humor e tesão”, diz Vinagre.
Não é coincidência que em parte das cenas de sexo com o corpo em estado extremo haja um forte elemento performático. Lembremos que o homem que cede seu ventre para criar órgãos no filme de Cronenberg os extirpa durante uma performance artística. E a protagonista de “Titane” se deixa levar pela influência da placa metálica acoplada ao crânio ao dançar libertinamente para o público em cima do capô do carro.

Alguns pesquisadores têm pensado o corpo em performance em termos distintos da visão tradicional. A britânica Laura Mulvey, por exemplo, chamava a atenção nos anos 1970 para o quanto o cinema tende a uma visão fundamentalmente masculina dos corpos, sobretudo os femininos.

Mas é possível ler essa corporeidade performática em outra chave. Pesquisadoras como Elena Del Río hoje entendem que pode ocorrer o contrário da objetificação –um regime de “mostração” da corporeidade eminentemente ativa e emancipada, de corpos que se apresentam livremente, expondo fisicalidade sem medo de julgamentos. Podem ser considerados abjetos na sociedade, mas não objetos –são sujeitos dos próprios desejos.

Em “Regra 34”, de Julia Murat, vencedor do último Festival de Locarno, a protagonista faz performances em uma rede social pornô para admiradores. Seus fetiches incluem ferir o corpo com cacos de vidro e se asfixiar.

“O universo da sexualidade é imenso e diverso. Talvez seja menos uma tendência a falar de violência e mais um movimento de abertura a essa pluralidade”, diz Murat, sobre a proliferação dessa corporeidade mais extrema no audiovisual recente.

“Não me parece que estamos menos sensibilizados à pornografia, ao contrário. Existe uma disputa de meios de produção que passou a acontecer no pornô nos últimos 20 anos, por diversos fatores, e um deles é a facilidade de distribuição da pornografia via internet”, afirma a diretora. “E essa disputa permite não apenas a diversidade temática, mas também maior diversidade de quem produz essas imagens. O resultado é a mudança no olhar audiovisual sobre o corpo e os gostos. Uma pluralidade na construção da imagem.”

O professor Diego Semerene, do departamento de estudos de mídia da Universidade de Amsterdã, tem um pensamento semelhante ao de Murat sobre o potencial da representação de corpos e sexualidades não normativos no cinema contemporâneo –mesmo que, para um público mais conservador, tudo não passe de sexo grotesco, doentio ou bizarro.

“Esses juízos de valor também aparecem como oportunidades de dar sentido aos prazeres do corpo e da linguagem que não coincidem com expectativas hegemônicas. Existe uma grande potencialidade política e sexual nesses ‘extremos'”, diz Semerene.

“Esse potencial existe quando a própria normatividade é exposta como o verdadeiro terreno do bizarro, do grotesco, mostrando que o ‘freak’ real não é o outro. E que não há nada mais doentio do que o normativo”, afirma o pesquisador. A dissidência, um dia, há de ser a nova norma.