IMG 20190311 212932 845 Dona Socorro e o estojo de lápis de corChegamos a São Raimundo em 1967. Nasci em Pedra Corrida – 44 quilômentros acima -, mas fomos ‘arrastados’ pelo Rio Doce, vivendo em diversos povoados ribeirinhos antes de ancorarmos definitivamente em Governador Valadares.
Todos os anos, o soldado Antonio Lima era transferido e não tínhamos tempo de criar raiz em nenhum lugar. Não era fácil para nenhum de nós.
Eu tinha 5 anos e vivera em 5 cidades diferentes, antes de aportarmos no lugar que se tornaria a minha referência.
Nossa casa fazia divisa com o campo do Esporte Clube Ibituruna, lugar que viria a ter grande importância na minha infância. Ali eu joguei bola, fiz amigos, fraturei ossos e tive grandes alegrias.
O bairro São Raimundo ficava espremido entre a favela do Morro da Orêia – hoje Morro do Paraíso – e o mesmo Rio Doce que me viu nascer.
Era um lugar de casebres simples, com suas ruas de terra batida e nomes de pedras preciosas.
Estabelecemo-nos, inicialmente, na rua Turmalina. Ao fim de dois anos, papai ergueria um barraco na Rua Topázio, palco de grandes aventuras com novos amigos, pés empoeirados, camisas remendadas, árvores que falavam vários idiomas, rolinhas da cor de terracota e tizis saltitantes.
No quintal havia laranjeiras, limoeiros, dois pés de manga e uma horta com pés de couve que chegavam ao céu.
Quando um PM chega a um novo lugar, trata de conhecer as pessoas mais influentes. Líderes comunitários, professores, padres, pastores, comerciantes e políticos estão no alto da lista de contatos importantes para um policial recém-chegado.
Foi assim que papai foi apresentado a Gabriel e Maria do Socorro, proprietários do Bar Chave de Ouro, que ficava localizado no ponto final do ônibus que levava e trazia a população ao centro da cidade.
O Chave de Ouro era também uma sorveteria que produzia o melhor picolé de coalhada do planeta.
Dona Socorro fazia deliciosos salgadinhos, Gabriel os vendia.
Nas prateleiras, reluziam garrafas de jurubeba Leão do Norte, catuaba, conhaques Presidente e Dreher, cachaças sem rótulo e groselha.
Uma mesa de sinuca e outra de totó (pebolim) faziam a alegria de quem gostava de um passa-tempo, enquanto bebericava seus venenos.
Gentis, Gabriel e Maria do Socorro convidaram os Lima para um café da tarde, na casa que ficava adjacente ao comércio da família.
Chegamos, fui apresentado ao filho Wellington, que se tornaria um amigo para a vida inteira.
Enquanto os adultos se deliciavam com um queimadinho com bolo de fubá, saí pelo quintal com o garoto, dois anos mais velho que eu.
Foi amor à primeira vista. Afinal, a amizade nada mais é que uma das mais puras formas de amar.
Wellington e eu saímos correndo por aquele minifúndio, chutando uma bola de plástico que caiu perto de uns destroços de construção.
Chamei-o para ver o que acabara de descobrir debaixo de umas tábuas empilhas sobre uns tijolos.
Tratava-se de um ninho de adoráveis criaturas, que capturamos para que se tornassem nossos bichinhos de estimação.
Naqueles dias, por onde eu ia, costumava levar um estojo de madeira do tamanho de uma merendeira, daqueles grandes. Nela, onde deveria estar acondicionado um sortimento de lápis de cor, eu ia colocando pedrinhas redondas que ia encontrando, flores que murchavam durante a noite e ‘rebanhos’ de melão de São Caetano.
Pegamos os bichinhos, colocamos dentro do estojo para que fossem nossos futuros ‘boizinhos’ e corremos para o interior da casa com o intuito de os mostrar aos nossos pais.
Cheguei esbaforido à mesa, abri a caixinha e os bichos saíram ziguezagueando entre pratos, talheres e xícaras.
Dona Socorro deu um salto, mamãe não conseguiu segurar um gritinho, misto de nojo e medo.
Papai fez cara severa.
Seu Sabriel soltou uma gargalhada.
Ratos não servem para animais de estimação e transmitem a peste bubônica, eu aprenderia ali.
Lavaram nossas mãos com sabão de coco, passaram uma quantidade industrial de álcool e ganhamos um sermão.
Os bichinhos, não sei que destino levaram. É provável que não tenham sobrevivido à fúria de Seu Antonio.
Estudaria com o Wellington do primeiro ano primário à oitava série ginasial. Seguimos amigos pela vida e hoje mantemos contato, trocando senvergonhices pelo whatzapp. E vivemos adiando um reencontro, que espero não tardar.
Na semana passada, Penha, irmã de Wellington, postou no Facebook uma foto de Dona Socorro segurando um exemplar de Meninos de São Raimundo, livro que escrevi em parceria com o poeta Bispo Filho.
Emocionei-me muitíssimo.
O tempo passou para todos nós, os cabelos dela ganharam o branco do algodão, mas Dona Socorro conservou os olhos mansos do dia que a vi pela primeira vez.
Essa crônica é um tributo a ela e seu marido Gabriel, que já não se encontra entre nós.
Espero poder abraçá-la em minha próxima ida a São Raimundo. Espero, também, que este abraço não tarde.
E sei que o episódio do estojo de lápis de cor estará na pauta de nossa prosa saudosa.

Fonte: Brazilian Voice