Um motivo poderoso, persistente e pouco lembrado está ajudando a reforçar as caravanas de migrantes rumo aos Estados Unidos. Além de fugirem da pobreza e da violência, os grupos que partem da Guatemala, de Honduras e de El Salvador são engrossados também por pessoas que tentam escapar da insegurança alimentar. Os três países integram o chamado “corredor seco” centro-americano, um dos mais vulneráveis do mundo a fenômenos extremos ligados ao El Niño, nome dado ao aquecimento anormal da faixa equatorial do Oceano Pacífico. É consenso entre cientistas que as mudanças climáticas agravaram a frequência e intensidade desse fenômeno.

A imprevisibilidade dos ciclos da chuva, com temporadas de seca até dois meses mais longas alternadas com períodos de chuvas perigosamente intensas, vem progressivamente ameaçando as plantações de subsistência na última década. Entre as principais vítimas estão os cultivos de milho e feijão, dos quais pequenos produtores rurais e indígenas, sem acesso a tecnologias de irrigação, dependem para se alimentar.

De acordo com Edwin Castellanos, diretor do instituto de pesquisas da Universidade Valle de Guatemala e associado do Instituto Interamericano para Pesquisa em Mudanças Globais (IAI), o El Niño tem batido à porta anualmente — antes, acontecia a cada cinco ou seis anos. O resultado é o agravamento das condições de vida da população mais pobre desses três países — que constituem o chamado Triângulo Norte da América Central. Segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), vivem em situação de pobreza 82% dos residentes de zonas rurais em Honduras; 77% na Guatemala; e 49% em El Salvador.

“Pode não haver apenas um fator para que as pessoas migrem. Normalmente, elas já estão numa situação difícil de pobreza; de falta de oportunidades econômicas, que são muito pequenas nas zonas rurais; e de violência em diversas regiões. E quando, ainda por cima, perdem plantações para as chuvas ou pela ausência delas, as mudanças climáticas podem ser o fator final para que tomem essa decisão”, disse Castellanos. A população desses países sofre com as tempestades de La Niña — fenômeno oposto ao El Niño, que ocorre quando há resfriamento do Pacífico —, que causam enchentes e deslizamentos de terra. Os últimos seis anos foram de chuvas abaixo da média. A expectativa é que, nos próximos anos, a situação mude para o extremo oposto.

Segundo estimativas da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), cerca de 60% dos cultivos de milho e até 80% das plantações de feijão foram perdidos nesses países, em 2015, por causa do El Niño. Já em 2018, só entre junho e julho, foram arruinados 280 mil hectares de plantações desses dois produtos, o que afetou mais de 2 milhões de pessoas, de acordo com o Programa Mundial de Alimentos (PMA). No total, a seca dos últimos anos levou cerca de 3,5 milhões de pessoas a precisar de assistência humanitária. E a região é também suscetível a furacões e terremotos.

Seguidas caravanas rumaram em direção aos Estados Unidos desde outubro do ano passado. Na foto, a multidão atravessa a fronteira entre a Guatemala e o México. Foto: Pedro Pardo / AFP

Para complicar ainda mais essa situação, no último ano a queda do preço internacional do café — produto importante dos três países — diminuiu as ofertas de emprego e os salários médios nas monoculturas, explicou Miguel Ángel García Arias, diretor regional na América Central da ONG Ação contra a Fome. A somatória de problemas tende a tornar as rendas das comunidades de origem mais dependentes do dinheiro regularmente enviado por seus membros que já cruzaram a fronteira americana. Em 2016, essas remessas corresponderam a 10%, 17% e 20% dos Produtos Internos Brutos (PIBs) de Guatemala, El Salvador e Honduras, respectivamente.

“A SECA DOS ÚLTIMOS ANOS LEVOU CERCA DE 3,5 MILHÕES DE PESSOAS A PRECISAR DE ASSISTÊNCIA HUMANITÁRIA EM HONDURAS, NA GUATEMALA E EM EL SALVADOR”

“A situação de insegurança alimentar pode ser tão negativa que já existe uma ligação entre comunidades de origem e emigrantes. A migração é um elemento-chave dessa realidade. Os 70 mil guatemaltecos deportados do México ou dos EUA só no ano passado nos dão a magnitude do problema”, afirmou García Arias. Na América Central, os territórios para agricultura são em geral pequenos, e, com a perda paulatina de terras por causa de fenômenos ligados ao clima, comunidades mais vulneráveis se transferem a áreas de reserva ou menos produtivas. Pesquisas como a da professora Maria Cristina García, da Universidade de Cornell, nos EUA, argumentam que a competição por bens em cenários como esses aumenta as chances de conflito político e violência sectária. Já o brasileiro Marcos Regis da Silva, diretor-executivo do IAI, explicou que há preocupações sobre o impacto das mudanças climáticas sobre a recuperação de populações e ecossistemas após fenômenos extremos.

“Até quando uma floresta semiárida poderá voltar a seu estado natural após a seca? Se antes a recuperação demorava dez anos, hoje esse tempo é muito maior. Muitos pesquisadores também acreditam que as mudanças climáticas estejam trazendo novas pestes ou reintroduzindo doenças erradicadas, como malária e febre amarela. Os ecossistemas estão estressados a um ponto que não conhecemos e, quanto mais eles perdem resiliência, mais as comunidades pobres vão sofrer. E é aí que mora o perigo”, disse Regis da Silva.

Uma espiral de precariedade social e degradação ambiental pode reforçar ainda mais a falta de alternativas para a população rural. Organizações de direitos humanos lembram que os fluxos migratórios não devem ser tratados como processos ameaçadores ou a serem coibidos. Entretanto, é importante que as pessoas não sejam forçadas a abandonar suas famílias e culturas para se aventurar em longas viagens, com o único objetivo de sobreviver. Nos estados do sul mexicano, até 30% dos migrantes centro-americanos relataram em 2017 ter sido vítimas ou testemunhas de violência — normalmente, os crimes incluem sequestros, abusos sexuais, extorsão e assassinatos —, segundo a Rede de Documentação das Organizações Defensoras de Migrantes. É também frequente que os camponeses penhorem suas terras para pagar coiotes, mesmo sob risco de serem deportados e, na volta, ficarem sem nada. Entre 2017 e 2018, as detenções no México de indocumentados do Triângulo Norte aumentaram em 59%, e só cerca de 19% deles chegaram aos EUA, diz a Cepal.

Um debate relativamente recente, é questionada a validade do termo “refugiado climático” — que não é adotado pela ONU — para se referir àqueles que foram forçados a se transferir em decorrência de fenômenos ligados ao clima que ameaçaram sua existência ou afetaram gravemente sua qualidade de vida. O Centro de Monitoramento de Deslocamento Interno afirma que 26,4 milhões de pessoas na última década migraram no mundo por causa de enchentes, tempestades, terremotos ou secas.

Acadêmicos e organizações não governamentais usam a expressão para defender a concessão de status legal protetivo e políticas públicas especiais a populações afetadas pelas mudanças climáticas, sobretudo de países em desenvolvimento. A britânica Climate and Migration Coalition pondera, entretanto, que a cautela é importante para evitar a interpretação de que esses fluxos migratórios são decorrentes apenas das mudanças climáticas. Na verdade, vêm de contextos de vulnerabilidade e, não raro, de negligência política. As soluções para mitigar as necessidades dessas populações rurais e indígenas não residem apenas nas metas ambientais estabelecidas por acordos mundiais a longuíssimo prazo, argumentou García Arias. É necessária a articulação de estratégias com foco direto em Honduras, Guatemala e El Salvador, embora esses países sejam responsáveis por uma ínfima porção das emissões globais de carbono — em 2014, por exemplo, só 0,37% do total global.

“Estamos falando de países com escassos investimentos sociais em saúde, educação e infraestrutura básica, o que reduz muito a possibilidade de famílias saírem de ciclos de pobreza. É nas redes de proteção social que temos uma margem para trazer melhorias. A ausência de Estado, combinada a um modelo agroexportador dependente de grãos básicos, faz com que os países sejam muito vulneráveis a desastres e mudanças climáticas”, disse o especialista.

Para além de eventuais ineficiência e corrupção, a falta de recursos no corredor seco torna os fluxos de ajuda estrangeira uma fonte importante. Contudo, entre outros dilemas, as verbas podem ficar sujeitas a bons laços diplomáticos. Desde o ano passado, ao menos duas vezes os EUA cortaram centenas de milhões de dólares de programas de desenvolvimento para os governos do Triângulo Norte — a última delas em 30 de março — como punição por sua suposta inação para conter os migrantes rumo ao norte. E, para Edwin Castellanos, os recursos ainda se concentram pouco na adaptação às mudanças climáticas. “Precisamos investir em estoques de água e sistemas de irrigação para pequenos produtores. Mas isso requer dinheiro, e precisamos complementar o esforço dos governos e de ONGs locais com financiamento internacional. A maioria dos recursos se destina a governança, segurança ou alívio da pobreza de forma genérica”, afirmou Castellanos, ex-assessor especial para a Presidência da Guatemala nas negociações do Acordo de Paris. “Aqui basicamente sentimos o efeito da poluição e esperamos que os países grandes a resolvam. Desse jeito, mesmo que os EUA construam um muro, muitas pessoas ainda tentarão cruzá-lo.”

Fonte: Revista Epoca.

Fonte: Brazilian Press