INÁCIO ARAUJO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Não é preciso muito para descobrir a natureza de “Primavera”. Basta chegar ao momento, talvez ainda antes do décimo minuto, em que o narrador menciona o romance escrito por dois primos, chamado “O Segredo da Romã”.

Por caprichos da linotipia, primeiro o nome se transforma em “O Segredo de Rema” e depois em “Os Degredos do Amor”. É o nome que o narrador reterá, como documento-chave de sua árvore genealógica. Quem concebe tais contorções verbais não pode ser bobo. É a primeira conclusão.

Antes, ainda, o narrador falará de seus pais, sobre o dia da morte do pai, enquanto as imagens registram ora fotos, ora filmes antigos. Depois, falará de uma antepassada que beijava de boca aberta, ideia ilustrada pela bocarra de um jacaré. Que relação existe entre um beijo e a boca de um bicho desses? Não importa muito, mas talvez exista. Essa é a segunda conclusão.

O que importa é que, desde o início, Carlos Porto de Andrade Junior faz um filme em que o essencial é a ressignificação, com imagens que são reinventadas pelo texto ou vice-versa. É experimental.

A maior parte dos filmes experimentais se deixa ver à medida que conhecemos a obra de seu autor. Eu nunca havia visto filmes de Andrade Junior, embora sua carreira date de 1977. Por que terá ele escolhido uma história de família que se perde no tempo e no espaço, vai de Portugal ao Brasil, passando por Paris, que envolve fazendas conquistadas e roubadas, e vai das fazendas até as praias do Rio?

Bem, “Os Degredos do Amor” parece ter sido um título adequado, já que o romance referido pelo narrador como história familiar envolverá fé e sexo, incluirá um jovem trabalhador, um outro que será conhecido como “o lobo da montanha”, incluirá momentos de incesto e desprendimento, um padre herege, sedutoras incríveis como Leonor, avó do narrador, santas e até mesmo uma amante de Rodin, o escultor, a belíssima Rosa, que mais tarde irá se dedicar a bordados geométricos e, por fim, desaparecerá no Rio sem deixar traço.
O outro polo é a morte, que consome os antepassados, começando pelo pai, ou seja, o correr inevitável da existência para o fim, seja ele qual for.

Esse percurso é acompanhado por um jogo de imagens buscadas em arquivo, ora inesperadas, ora quase óbvias, mas sempre deslocadas de seu contexto e de seu tempo.

São reportagens, filmes científicos, educativos, ficcionais. Tudo que importa é buscar nos fragmentos não uma ilustração, mas um novo sentido à narrativa. O resultado por vezes é atraente, por vezes monótono, mas nunca tolo.

Tomemos a primeira, enigmática imagem. O que é aquilo? Um polvo branco que parece espermatozoide ou, ao contrário, um espermatozoide que parece polvo? Uma semente de vida ou um animal que se alimenta das presas que apanha em suas extremidades? Vida ou morte?
Em todo caso, neste filme, imagens mortas ressuscitam na medida em que adquirem novos sentidos e lugares.

Não será demais dizer que este longa-metragem, datado de 2018 e agora nos cinemas, traz à vida alguns atores já mortos. É o caso de Ruth de Souza, morta em 2020, Emilio di Biasi, em 2019, e Ruth Escobar em 2017. Que o cinema os mantenha em vida não é uma má função dessa arte que, como o polvo da abertura, absorve misteriosamente tempo, imagens, palavras, cenas, sons e objetos em seus poros.

PRIMAVERA
Onde: Em cartaz nos cinemas
Elenco: Ruth de Souza, Ana Paula Arósio, Ruth Escobar
Produção: Brasil, 2022
Direção: Carlos Porto de Andrade Jr.
Avaliação: bom