ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus. Até chegarmos agora ao ChatGPT.

O mundo começa a se familiarizar agora com a ferramenta virtual que, com por meio da IA (inteligência artificial), constrói textos inteiros sobre praticamente tudo o que você possa imaginar. Basta dar um comando, como pedir a receita de um bolo de fubá ou um ensaio sobre Shakespeare, e o robô lhe devolve a obra pronta.

As pessoas têm testado o chatbot para as mais variadas funções. O pastor Melqui Ferreira não quis ficar de fora. De Surubim (PE), onde lidera a igreja Avivafé, ordenou: “Escreva um texto de 200 palavras sobre a importância de andar com Deus”. Seja feita a vossa vontade.

“Ele nos dá a direção, o propósito e a paz que precisamos para enfrentar os desafios e as incertezas do dia a dia”, diz um trecho do escrito proposto pelo ChatGPT.

Melqui intimou a IA a lhe oferecer uma segunda sugestão, e o novo texto começava assim: “Andar com Deus é uma das mais valiosas jornadas que uma pessoa pode empreender”.

É este o futuro da pregação cristã? Eis a questão que vem pipocando nas igrejas, na medida em que mais e mais gente ouve falar da cornucópia de possibilidades do ChatGPT.

“Você pode responder: ‘Claro que não’. Talvez você simplesmente não acredite que tal coisa possa acontecer”, escreveu o teólogo Russell Moore, até onde se sabe sem auxílio do chatbot, no Christianity Today, portal referência do cristianismo americano. “Mas imagine tentar explicar para alguém, 30 anos atrás, o Google ou um app da Bíblia para smartphone. E se a IA pudesse escrever sermões completamente ortodoxos, biblicamente ancorados e convincentemente argumentados para pastores todas as semanas?”

Não é só um exercício de imaginação. Da pernambucana Surubim à Carol Stream, vila americana que sedia o Christianity Today, líderes religiosos estudam como a nova tecnologia pode colaborar para a missão pastoral.

Refletem também se falta a uma pregação redigida por máquina aquela faísca divina que eles creem lhes servir de inspiração.
O pastor Silas Malafaia deu uma chance ao ChatGPT e não gostou do que viu. “É muito fraco. Até pra iniciante é fraco. A informação é pouca. Não achei nada demais.”

Ele solicitou palavras sobre o tema da reconciliação sob a ótica teológica e recebeu de volta um texto dizendo que esse tópico “é uma mensagem central da mensagem cristã”, mais a recomendação de alguns versículos.

Melqui encontrou algumas falhas na ferramenta. “As minhas experiências não têm sido boas no início.” Por exemplo: quis algo sobre as tribos de Israel, e uma das listadas não existe na Bíblia. Acontece muito. Se uma informação errada se reproduz indevidamente na internet, como uma referência equivocada no Wikipedia, o ChatGPT pode reproduzi-la.

Mas o pastor acha que a IA tende a evoluir com o passar do tempo, aprendendo com os próprios erros. Até concorda que o chatbot pode ajudar a construir sermões. Mas, “sem a inspiração do Espírito Santo”, a mensagem estará carente de profundidade, afirma.

Nada, contudo, de demonizar o dispositivo. Com TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), ele encontra no robô um recurso até bem útil para o pastoreio do dia a dia. “Se quero falar sobre santidade, e nessa hora o cérebro trava, a ferramenta me ajuda bastante a montar as peças do quebra-cabeça.”

O melhor a fazer, diz, é não embutir de saída um caráter positivo ou negativo nas novidades tecnológicas. Tudo vai depender do uso responsável que se faz delas. Assim como a mesma faca pode servir tanto para passar manteiga no pão quanto para ferir alguém, compara.

O bispo Newton Rueda é um entusiasta de novas tecnologias. Lembra que sua igreja, a Renascer em Cristo, é vanguardista no campo virtual. Aderiu a redes sociais quando ainda era tudo mato e já até promoveu baladas gospel no metaverso. Mas a prudência é sempre sábia, diz.

“A gente não sabe o quão invasivo vai ser o sistema”, diz sobre o chatbot que vem causando comichão ético em várias áreas em que a palavra sempre foi central, da educação à advocacia.
Diretor de Tecnologia da Informação na Renascer, Rueda teme que a inteligência artificial absorva muito da nossa intimidade, extraindo nossos dados, para prosperar. Outro medo é extirpar da pregação o que poderíamos chamar de alma do texto.

“Nós, como igreja, nunca vamos desprezar a capacidade do sacerdote de ter a revelação de entregar o que a pessoa precisa. O conteúdo de fé é de conexão direta da pessoa com Deus, e o sacerdote vai ajudar nessa mediação.”

Não que o ChatGPT seja de todo ruim. Ele teria mais utilidade, na opinião do bispo, se indicasse fontes para aprimorar o sermão. “Um texto bíblico, um ministério que fale sobre o tema, o que já é feito nos sistemas de busca como o Google. Exceder-se a isso Não sei até onde vai ter efeito espiritualmente. O pessoal ler o que a máquina construiu vai ser um discurso inócuo quanto ao poder do Espírito Santo.”

O Fuxico Gospel, portal evangélico, mostrou que o chatbot está cada vez mais rebuscado. Fez uma série de testes, e o que teve de retorno superou a agremiação burocrática de dizeres religiosos.

“O ChatGPT não criou apenas vários sermões, como auxiliou a forma como o pregador deve falar diante da igreja. Frases como ‘meus irmãos e irmãs’, ‘Deus abençoe’ e o habitual “Amém” no final foram apenas alguns dos pontos incríveis dos sermões criados pela IA, que os fizeram se assemelhar e muito à pregação de um pastor real.”

Lucas não está muito confortável em admitir, mas é exatamente o que ele fez duas vezes na semana passada: ler uma redação sobre a passagem do livro bíblico de Romanos que fala de não se conformar ao mundo, mas se permitir ter a mente transformada por Deus.

Mais moço entre os três líderes de uma pequena igreja na periferia paulistana, ele prefere omitir o sobrenome porque, diz, tem receio de ser julgado pelos pares.

Além de pastor, Lucas é analista de sistemas e rato de computador. Orgulha-se de ter entrado nas redes sociais quando “tudo que é pastor achava uma bobagem”. E agora está todo mundo nelas, aponta. Dê tempo ao tempo, e as pessoas se acostumam.

Ele não pretende recorrer sempre à IA para pregar. Mas não vê grande mal em se valer dela quando o cansaço é muito, e a mente pede arrego. “Tem muito pastor que, antes do GPT, entrava no púlpito no piloto automático, com um sermão decorado que os irmãos já tinham ouvido duas, três vezes. Eu, não. Sempre tô lá de coração, mesmo depois de ter trabalhado 8, 9 horas seguidas. Posso estar lendo uma parte, mas é o olho no olho que vai me conectar com as pessoas.”