Nesta semana faz quatro anos que rompeu a barragem da mineradora Vale, em Brumadinho (MG). Entre as famílias das 270 vítimas da tragédia, três seguem à espera de uma chance de ter velório, enterro e uma despedida: os corpos não foram achados sob o mar de lama. Na esperança de dar ponto final a este capítulo, a força-tarefa de bombeiros e policiais mantém buscas e trabalhos de análise dos vestígios coletados no lugar que um dia foi a Mina do Córrego do Feijão.

“Nossos amados não pertencem ao lugar da tragédia. As buscas são uma forma de reparação com as vítimas sendo recuperadas”, diz Patrícia Borelli, filha de Maria de Lurdes da Costa Bueno, de 59 anos, corretora de São José do Rio Pardo (SP) que estava hospedada em uma pousada em Brumadinho. Ela, o marido, dois enteados e a nora, grávida, foram soterrados junto com mais hóspedes, funcionários e os donos do local. Os planos eram de fazer uma visita ao museu Inhotim.

As famílias de Nathália de Oliveira Porto Araújo, de 25 anos, e de Tiago Tadeu Mendes da Silva, de 34, – ela estagiária e ele funcionário da Vale – são as outras que seguem à espera. Com o passar do tempo, a preocupação dos bombeiros e da Polícia Civil é de que se perca a qualidade do material ainda existente, por causa das chuvas e da decomposição, prejudicando que se encontrem resquícios das demais vítimas.

Em campo

Quase 6 mil bombeiros militares atuaram nas sete fases de buscas. Hoje, a 8ª etapa atua com cinco estações, que consistem em equipamentos de peneiramento, acompanhados de bombeiros que verificam fragmentos. São processadas cerca de 200 toneladas por hora em cada máquina. Desde 2019, duas interrupções atrapalharam: a pandemia e as fortes chuvas que assolaram a Grande Belo Horizonte no fim de 2021 e início de 2022. O trabalho continua diariamente.

Se para muitos soa improvável ainda achar restos mortais, uma notícia no último dezembro reavivou a esperança: foi identificada a supervisora da Vale Cristiane Antunes Campus, de 35 anos – a 267ª vítima.

Familiares dos desaparecidos criaram a Comissão dos Não Encontrados – no início eram 11 – e fazem a ponte entre as instituições (como polícia, bombeiros e Ministério Público) e os parentes dos outros. “Toda família merece sepultar o seu. Ninguém pode ficar lá perdido. Pode demorar, a gente não sabe que dia, é tudo no tempo de Deus”, diz Natália de Oliveira, professora em Brumadinho e irmã de Lecilda, identificada no fim de 2021.

Ela e dois parentes de outras vítimas, Josiana Resende, mais conhecida como “Jojo”, e Geraldo Resende, levam informações às outras famílias, mesmo após os seus entes queridos já terem sido localizados.

“Sempre me emociona muito, eles têm carinho com minha família, sempre representam e homenageiam minha mãe na minha ausência”, conta Patrícia, que vive nos Estados Unidos e quer visitar o grupo em Brumadinho em abril.

No laboratório

Por causa do tempo, o material biológico que sai da mina e chega ao Instituto Médico-Legal (IML) vem mais deteriorado, relata o médico legista responsável pelas identificações de 2019 até agosto de 2022 na Polícia de Minas, Ricardo Araújo. Ele era da diretoria do IML até o desastre, quando foi designado para realizar identificações e manter contato com as famílias.

Dentre os métodos científicos usados, estão a papiloscopia (impressão digital), o exame da arcada dentária e o de DNA. Na primeira semana, a impressão digital foi capaz de reconhecer 79 vítimas, e no primeiro mês, cerca de 120. Mas, diante do tipo de acidente, muitos foram mutilados, o que faz com que diversas partes da mesma pessoa sejam encontradas em momentos distintos.

As reidentificações, desde o início, já ultrapassaram o número de primeiras identificações. Significa que foram encontradas mais partes de uma mesma vítima do que de pessoas diferentes. São 1.003 casos levados pela frente de busca até dezembro, de um total de 270 atingidos, reflexo da segmentação dos corpos.

Foi preciso criar um banco de dados com as digitais dos desaparecidos, para fazer o reconhecimento por meio de leitor biométrico. Houve ainda entrevistas com as famílias para saber características, como tatuagens, tratamentos odontológicos, coleta de DNA e busca ativa em hospitais e clínicas por exames das vítimas.

Agora, impressões digitais e elementos dentários não funcionam mais e se usa o exame de DNA. Mas como o material biológico usado também se decompõe, é preciso analisar tecidos duros, como ossos. Para Araújo, será possível identificar todos. “Tecnologicamente estamos preparados e não trabalhamos com data-limite”.

Há ainda famílias que acompanham as buscas com a expectativa de que mais partes dos familiares sejam achadas. “O que se encontrou do familiar deles era tão pouco que não quiseram por no caixão”, afirma Natália, da Comissão.

Divergência entre Vale e parentes dos mortos adia abertura de memorial

O memorial que vai homenagear os 270 mortos na barragem em Brumadinho teve a sua inauguração adiada por causa de uma divergência entre parentes das vítimas e a mineradora Vale. A previsão inicial era de que o espaço fosse aberto ao público em janeiro.

As famílias dizem que a empresa tenta impedir que elas administrem o memorial. “O impasse é que infelizmente não conseguimos acertar com a Vale a questão da governança do memorial. Ela quer fazer parte, e nós não aceitamos. Não faz sentido a empresa que matou integrar a governança de um espaço que vai homenagear as vítimas”, afirma a técnica em Química Nayara Cristina Porto Ferreira, de 30 anos.

Ela integra a diretoria da Associação dos Familiares das Vítimas e Atingidos da Tragédia do Rompimento da Barragem Mina Córrego do Feijão (Avabrum) desde a sua fundação, em 2019, e é viúva de Everton Lopes Ferreira, que era operador de empilhadeira da Vale. Ele deixou também uma filha de 11 anos, do seu primeiro relacionamento.

Já a Vale afirma, em nota, que está “em constante diálogo” com a Avabrum, que representa as famílias. Ainda segundo a empresa, o diálogo tem a participação do Ministério Público de Minas Gerais sobre todos os aspectos necessários à gestão do espaço e houve escuta ativa dos familiares.

Proposta

Em relação às obras do memorial, a parte estrutural está nos ajustes finais, e a próxima fase é montar a expografia (o conteúdo a ser exposto). Com 1,2 mil m² de área construída, o espaço foi erguido em terreno cedido pela Vale, que custeou as obras, de frente para a serra onde ficava a barragem que desmoronou, no Córrego do Feijão.

O projeto é rico em simbologia. O pavilhão de entrada tem forma distorcida e fragmentada e representa o sonho das vítimas, descreve em seu site o arquiteto mineiro Gustavo Penna, que projetou o memorial. Na sequência, um ambiente escuro, iluminado por frestas no teto apenas, representa a invasão da lama. No concreto, estão incorporadas algumas peças metálicas retiradas dos escombros, dando sombra e proteção. Foram plantados ainda 272 ipês amarelos, “para que cada lamento possa ser ouvido”, segundo Penna. São 270 mortos no total, mas as famílias também incluem na conta dois bebês, uma vez que duas vítimas estavam grávidas.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.