(FOLHAPRESS) – “Estourou, estourou o fluxo”, diz um funcionário do centro municipal de combate a DSTs no centro de São Paulo.

Logo em seguida, uma multidão sai do núcleo da cracolândia em direção ao equipamento público, na rua Cleveland. Uma funcionária pede para que todos entrem no local por precaução e fecha as portas por alguns minutos.

Esse tipo de acontecimento se repete com frequência, sempre que acontece alguma confusão entre usuários de crack, com guardas civis ou policiais. E quem vive o dia a dia na região relata que os chamados estouros movimentam blocos cada vez maiores de pessoas.

A percepção coincide com os dados da Prefeitura de São Paulo: após o esvaziamento durante a pandemia, a cracolândia voltou a crescer. Em alguns meses deste ano, a quantidade de pessoas no chamado fluxo superou a de 2019, antes da crise sanitária.

Desde julho de 2018, a prefeitura contabiliza a população da cracolândia por meio de fotos feitas por drones da GCM (Guarda Civil Metropolitana).

Em novembro, no período matutino, a estimativa é de uma média de 666 pessoas por dia concentradas na rua Helvétia e em seus arredores. Em relação ao mesmo mês de 2020, houve um aumento de 64%, mas o número é menor do que o de novembro de 2019 (772).

No período de janeiro a novembro, o ano de 2021 teve, em média, 599 pessoas aglomeradas no fluxo. Em 2019, no mesmo período, a média foi de 526 (a conta exclui o mês de março, não contabilizado pela prefeitura no levantamento enviado à Folha).

Os números ainda são bem menores do que os de 2018, quando as contagens registravam uma população que beirava as 2.000 mil pessoas. Há também uma espécie de cracolândia expandida, que respinga em diversos bairros do centro.

“A cracolândia cresceu e ninguém faz nada. De vez em quando tem uma revolução, soltam bombas, mas no dia seguinte não acontece nada”, reclama o taxista João Freitas. Com 77 anos, ele atua na região antes mesmo do termo cracolândia ser inventado, na década de 1990.

Desde então, a região tem sido um problema de todo prefeito, que, muitas vezes, encerra projeto do antecessor para a área assim que assume. Cria-se uma nova proposta, quase do zero. E a cracolândia segue firme.

Na gestão de Fernando Haddad (PT), a região era atendida pelo programa Braços Abertos, que dava emprego, pagava hotel e se baseava na ideia de redução de danos, focada em melhorar a qualidade de vida dos usuários.

O programa foi interrompido por João Doria (PSDB), que chegou a decretar o fim da cracolândia e passou a priorizar a abstinência total.

Bruno Covas (PSDB) assumiu e fez novas mudanças, em um modelo que admite tanto abstinência como redução de danos. Ele adotou, porém, a retirada dos serviços do coração da cracolândia, com objetivo de afastar os usuários de drogas da região e atraí-los para equipamentos distantes dali.

A gestão Ricardo Nunes (MDB) argumenta que a estratégia tem sido positiva, com alta demanda nos chamados Siats (Serviços Integrados de Acolhida Terapêutica), locais que mesclam moradia temporária, tratamento médico e encaminhamento a emprego.

Para críticos da atual gestão, a retirada de serviços da cracolândia deixou aquela população desamparada. Além disso, denunciam o recrudescimento da violência nas ações da GCM (Guarda Civil Metropolitana), o que ajudaria a espalhar esses usuários de drogas para pontos onde não contam com qualquer atendimento.

O Ministério Público chegou a entrar com uma ação para tentar impedir a GCM de fazer papel de polícia na região.

“As pessoas começaram a migrar para outros pontos da cidade por conta da violência. Hoje, se parar para olhar, naquele quadrilátero pode ter diminuído o número de pessoas, mas nos quadriláteros próximos aumentou”, diz Maria Angélica Comis, membro do Comuda (Conselho Municipal de Políticas Públicas de Drogas e Álcool).

Comis é coordenadora do Centro de Convivência É de Lei, que atua na região, e também trabalhou no programa Braços Abertos durante a gestão Haddad. “Esse tipo de política de tirar serviços para diminuir a população aumenta as populações vulneráveis no entorno”, acrescenta.

Para membros de entidades que atuam naquela região, a prefeitura não só deixa de fazer atendimentos como deliberadamente trata com hostilidade pessoas que fazem trabalho social ali, uma vez que a distribuição de comida atrapalharia a estratégia de tentar afastar os dependentes químicos daquela região.

Em novembro, o padre Julio Lancelloti foi impedido de distribuir comida na cracolândia. Em outro episódio, o gari José Carlos Matos, que distribui pão e água, também teve problemas com a GCM.

Guardas relatam, por sua vez, serem alvos de ataques frequentes do crime organizado que domina a área.

A cracolândia é uma importante fonte de renda do PCC (Primeiro Comando da Capital). Ali, o quilo do crack é comercializado no varejo pelos criminosos por até R$ 45 mil em 36 barracas que funcionam ininterruptamente -estima-se uma venda de 12 quilos diariamente.

A última operação da Polícia Civil prendeu mais de 30 suspeitos de tráfico naquela região, inclusive uma jovem de 19 anos, Lorraine Cutier Bauer Romeiro, conhecida como “Gatinha da Cracolândia”.

Alexis Vargas, secretário-executivo de projetos estratégicos da Secretaria de Governo da gestão Nunes, nega que a GCM faça papel de polícia, mas admite que ela atua em apoio às ações contra o tráfico.

Um ponto destacado por Vargas é o trabalho de impedir a armação de tendas no local, que serviam de pontos de venda de droga e escondiam traficantes. Ele também defende a retirada dos equipamentos do fluxo. “A gente vê em outras cidades mundo, as que tiveram sucesso foram deslocando o atendimento e não mantendo e alimentando uma cena de uso aberto. Atraindo para fora da cena de uso e conquistando para o tratamento”, diz.

O psiquiatra Flávio Falcone, conhecido na região como Flávio Palhaço e que atua em ações de redução de danos na cracolândia há quase 10 anos, diz o poder público foca suas ações na droga, mas o principal problema é social.

“A questão social é muito maior do que a questão da dependência química. A partir de 2016 existe estrategicamente uma inversão dessa questão colocando o crack como o principal problema. Mesmo fazendo essa inversão a oferta de tratamento não atende a necessidade daquela população”, diz.

A falta de moradia, para ele, é um dos principais problemas. “Você já deve ter visto a situação que está a praça Princesa Isabel. É uma grande ironia a praça chamar Princesa Isabel. Ali é praticamente um quilombo, porque a maior parte das pessoas que estão ali são pretas e estão ali por falta de moradia”.

Ex-presidente do Comuda e cofundadora da Iniciativa Negra por Uma Nova Política Sobre Droga, Nathália Oliveira tem pensamento parecido sobre o tema. “A cracolândia é como se fosse uma catraca, muitas pessoas que estão ali passaram pelo sistema prisional. O que a cracolândia reúne são pessoas com muitas vulnerabilidades para além do uso de drogas e a maior parte dessas pessoas são negras”.