(FOLHAPRESS) – O assassinato de Galdino Jesus dos Santos, índio pataxó hã-hã-hãe, que completa 25 anos nesta quarta-feira (20), é hoje tido como um divisor de águas, ainda que trágico, para o movimento indígena.

Galdino estava em Brasília como parte de uma comitiva indígena para reivindicar terras. Em especial a posse de cinco fazendas na sua região, que já haviam sido demarcadas, mas das quais proprietários se recusavam a sair.

Ele dormia em um ponto de ônibus quando cinco homens (três deles da mesma família) atearam fogo em seu corpo. Foi levado a um hospital ainda com vida, mas morreu um dia depois.

O episódio foi seguido de uma série de atos, com apoio de movimentos sociais, na capital federal. O caso foi amplamente coberto pela mídia nacional e teve repercussão internacional. A comunidade indígena se mobilizou.

“A gente quis, naquele momento, terminar o que ele foi para Brasília determinado a fazer”, lembra o então cacique e primo de Galdino, Wilson, conhecido como Ninho. “É uma lembrança que fica na nossa cabeça para o resto da vida da família e também da comunidade.” ​

Na sequência do episódio, a aldeia ocupou as cinco fazendas e conseguiu reconquistar a posse dos 788 hectares de terra. “Ele chegou no caixão. Para nós foi uma honra ter cumprido a missão dele”, completa.

“Chamamos esse movimento de ‘reconquista da nossa terra’. A gente conseguiu tomar as cinco fazendas e posteriormente avançamos mais; em todas as ocupações que fizemos depois da morte dele, conseguimos resistir”, conta Fabio Titiah, liderança pataxó hã-hã-hãe e vice-cacique da aldeia.

O julgamento do caso ocorreu em 2001, quatros anos e meio após o assassinato. Os agressores disseram que “era para ser uma brincadeira” e queriam apenas “dar um susto” no homem que dormia no banco de um ponto de ônibus. De acordo com as investigações, eles compraram dois litros de álcool em um posto de combustível minutos antes de cometer o crime.

Um júri popular condenou os quatro maiores de idade envolvidos -Max Rogério Alves, Antônio Novely Vilanova, Eron Chaves de Oliveira e Tomás Oliveira de Almeida- a 14 anos de prisão em regime fechado por homicídio doloso (com intenção) triplamente qualificado.

Em 2002, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal deu a eles o direito de exercer funções administrativas em órgãos públicos durante o dia. Tiveram também permissão para estudar em universidades fora da cadeia. Em 2004, ganharam a liberdade condicional.

Então menor de idade na data do crime, Gutemberg Nader de Almeida Júnior cumpriu medida socioeducativa e foi liberado ainda em 1997.

Procurados pela reportagem, Max Alves e Gutemberg Júnior não foram encontrados. Os demais não quiseram se pronunciar. Alves, atualmente com 44 anos, é analista judiciário do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, com salário bruto de R$ 16 mil. Antes, exerceu a profissão de advogado.

Antonio Vilanova, 44, é fisioterapeuta da Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Tem remuneração bruta superior a R$ 15 mil. Eron Chaves Oliveira, 44, é agente de trânsito da capital federal, e recebe cerca de R$ 14 mil de salário total, segundo o último contracheque divulgado pelo governo distrital.

Tomás de Almeida, 43, é do quadro efetivo do Senado. Ingressou como técnico legislativo em 2012. Segundo o Portal da Transparência da Casa, tem remuneração básica de R$ 22,3 mil.

Irmão de Tomás, Gutemberg Júnior, 41, é policial rodoviário federal desde 2016. Antes, foi aprovado em um concurso da Polícia Civil do Distrito Federal, mas foi vetado na etapa de investigação da vida pregressa. A reportagem conversou com a mãe dele, que não quis fornecer seu contato.

MORTE DE GALDINO É MARCO PARA MOVIMENTO INDÍGENA

Galdino foi morto em um 20 de abril. Na última terça-feira, 19 de abril, sua aldeia aproveitou o Dia do Índio não só para lembrar sua memória, com palestras contando sua história aos mais jovens, mas também para “comemorar e refletir”, como propõe o ex-cacique Ninho.

Há 40 anos, em 1982, a Funai (Fundação Nacional do Índio) deu entrada na ação cível que acabaria, em decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2012, por anular os títulos de propriedade da região dos pataxós hã-hã-hãe no sul da Bahia -na prática, o ato efetivou e deu segurança jurídica às terras demarcadas para o grupo.

Foi também o ano em que a aldeia reconquistou os primeiros mil hectares deste território.

Para Roberto Liebgott, secretário-adjunto do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) em 1997, a morte de Galdino foi um marco. Do ponto de vista social -pela repercussão e adesão social à causa na época- e jurídico.

“A Constituição Federal é de 1988, então a compreensão do conjunto de direitos indígenas era recente na época. O caso traz uma importante mobilização do Judiciário em torno disso”, diz.

O que não há, completa, é uma mudança na postura do Estado brasileiro. “É quem tem a obrigação constitucional de fazer valer os direitos indígenas, mas há uma permanente omissão e negligência e, nos últimos anos, inclusive, uma violenta perseguição e afronta aos territórios indígenas, por meio de invasões sistemáticas.”

Ninho lembra dos outros parentes -como os indígenas chamam outros indígenas- que viu cair desde que se engajou no ativismo pela terra. Inclusive o irmão de Galdino, João Cravinho, morto em uma tocaia de fazendeiros em 1988.

“A gente faz a reflexão das perdas que tivemos e das vitórias, conquistadas com muito derramamento de sangue. A gente considera isso uma resistência. Tudo por conta da nossa terra, do nosso território.”