(FOLHAPRESS) – A Starlink, empresa do bilionário Elon Musk, obteve aval da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) para operar no Brasil há nove meses e já descumpre as regras definidas para a venda de pacotes de internet por satélite.

Admirador de Musk, o presidente Jair Bolsonaro (PL), candidato à reeleição, chegou a anunciar, em maio, que a companhia fará a conexão de escolas e ajudará a monitorar a Amazônia, antes mesmo de uma licitação para os serviços ser aberta.

Embora ainda não esteja formalizada qualquer parceria entre Musk e o governo, a empresa já atua no país, vendendo conexão de internet por satélite a clientes privados. A contratação é pelo site da Starlink.

As práticas comerciais da Starlink ferem o RGC (Regulamento Geral de Direitos do Consumidor de Serviços de Telecomunicações) e o CDC (Código de Defesa do Consumidor), que servem de guia para a atuação das empresas do ramo.

Cabe à Anatel investigar e decidir se cabe punição, uma vez provocada. No entanto, ainda não há processos em andamento sobre o caso.

Segundo assessores do Palácio do Planalto, nesta sexta-feira (22), o ministro das Comunicações, Fábio Faria, anuncia o lançamento de uma base de recepção de sinais da Starlink em Manaus (AM) durante um evento que deve contar com a presença do presidente Jair Bolsonaro, em campanha.

O governo defende que a empresa de Musk faça a conexão das escolas em locais de difícil acesso na Amazônia e ajude a monitorar a floresta para conter o desmatamento, que, sob sua gestão, atingiu patamares elevados.

Quem optar pela Starlink hoje não saberá, por exemplo, quem prestará o serviço, porque não consta nos documentos da empresa endereço ou razão social, exigência básica da agência.

A empresa informa que poderá suspender o serviço por motivos além da falta de pagamento das faturas pelo consumidor, o que fere o RGC.

Diz ainda que cobrará R$ 2.000 pelo equipamento de recepção a ser instalado na casa do cliente.

No mercado, em geral, eles são cedidos em comodato e trocados, sem custo extra para o cliente, quando ocorre atualização tecnológica.

A Starlink informa que, em situações desse tipo, o cliente terá de gastar novamente na compra de outro aparelho.

Embora a empresa informe o valor da mensalidade, a Starlink “se reserva o direito de ajustar o preço cobrado por outros fatores”.

Ou seja, diferentemente das demais operadoras, que discriminam os custos na conta por exigência do regulador, a empresa de Elon Musk não deixa claro quais fatores podem influenciar no reajuste de preço, contrariando o Código de Defesa do Consumidor e os regulamentos da Anatel.

Há ainda a previsão de cobrança de depósitos e de valores antes da ativação dos serviços ou a entrega dos equipamentos.

Inexiste no contrato a relação de direitos e deveres do assinante. O Contrato de Ordem Preliminar e Prestação do Serviço não elenca, como de rigor, as hipóteses de suspensão dos serviços a pedido do assinante.

Por fim, o item 14 do contrato define que a arbitragem -um processo caro e destinado a disputas entre empresas bilionárias- será o mecanismo de solução de conflitos com usuários, ignorando o Código de Defesa do Consumidor.

Técnicos do setor consideram que a imposição de mecanismo de solução de conflitos escolhido exclusivamente pela prestadora, bem como a criação de ritos que dificultem as reclamações dos consumidores, contrariam as regras estabelecidas na lei e na regulamentação aplicável.

A reportagem não conseguiu contato com a Starlink, que não publica seu endereço nem telefones comerciais.

Consultado, Vitor Urner, que assinou os documentos para abertura da Starlink no Brasil, disse que não responde legalmente pela empresa e se recusou a dar os contatos de seus executivos e advogados por ferir normas internas.

PARCERIA PARA UM PROGRAMA QUE JÁ EXISTE

Em maio, durante um encontro com Elon Musk e empresários no interior de São Paulo, o presidente Jair Bolsonaro anunciou uma parceria com o bilionário para os serviços nas escolas da Amazônia.

No entanto, o programa já existe há quatro anos e está a cargo de outras duas empresas, a Telebras e a Viasat, que operam o satélite brasileiro.

Na ocasião, Musk, que é dono também da Tesla e da SpaceX, publicou nas redes sociais que estava “superanimado por estar no Brasil para o lançamento da Starlink para 19 mil escolas desconectadas em áreas rurais e monitoramento ambiental da Amazônia”.

A empresa não tinha, na época, bases de recepção dos sinais de satélites na Amazônia. Apesar da preferência do governo por Musk, há outros concorrentes atuando no país, como Kepler, OneWeb, Swarm e Lightspeed.

A anuência da Anatel para que essas empresas atuassem em solo brasileiro ocorreu após um constrangimento causado pelo ministro das Comunicações, Fábio Faria.

No fim do ano passado, Faria visitou Musk na Europa e postou um vídeo em que anunciava uma parceria com o empresário -divulgada novamente no evento com o presidente Jair Bolsonaro (PL) em maio, no interior de São Paulo.

Outras empresas do setor também poderão fechar parcerias com o governo dentro do Wifi Brasil, o programa de conectividade em áreas afastadas dentro do qual Musk pretende prestar o serviço. O foco são escolas no Norte e no Nordeste, principalmente na área rural. No entanto, elas ainda têm dúvidas se haverá essa possibilidade -tanto para elas, quanto para Musk.

SUFOCADA FINANCEIRAMENTE, TELEBRAS NÃO CONSEGUE AVANÇAR NAS ESCOLAS

O programa Wifi Brasil existe no país desde 2018 e já custou mais de R$ 700 milhões. Lançado pelo então ministro Gilberto Kassab, um dos caciques do PSD de Faria, ele conta com satélite próprio operado pela Viasat, do bilionário Mark Dankberg, e pela Telebras.

A continuidade do projeto, no entanto, está ameaçada pelos cortes do governo na área. Com a campanha eleitoral, que levou o governo a gastar R$ 42 bilhões com o Auxílio Brasil, houve os recursos para a Telebras secaram.

O Orçamento da estatal para este ano foi reduzido à metade, de R$ 800 milhões para R$ 400 milhões. Será necessária uma suplementação de R$ 150 milhões até dezembro para fechar as contas.

Sem dinheiro, a estatal está sem pagar a Viasat há três meses, uma dívida que já soma R$ 12 milhões, segundo técnicos da companhia.

O objetivo do programa é justamente levar conexão a áreas remotas. Para isso, a Viasat e a Telebras exploram 30% da capacidade do satélite brasileiro SGDC-1. Os 70% restantes ficam com as Forças Armadas.

Isso, no entanto, não impede que outras empresas que possuem satélites possam operar dentro do mesmo programa.

A conexão na Amazônia também foi uma preocupação dos últimos leilões da telefonia celular (4G e 5G). As operadoras que venceram o certame foram obrigadas a levar conexão à Amazônia cada vez com mais capacidade e velocidade de conexão.

No último leilão (5G), realizado em novembro do ano passado, o governo conseguiu garantir R$ 1 bilhão para a instalação de cabos pelo rio Amazonas que permitirão acessos na região. O projeto foi batizado de Amazônia Conectada.

Nos bastidores, as teles afirmam que levar a conexão a essas áreas com contratos rígidos de cobertura impostos por leilões de radiofrequência (avenidas no ar por onde fazem trafegar seus sinais) dão um sinal equivocado aos consumidores.

Para elas, a imagem é a de que as teles não cumprem seu papel e que Musk chega como o “salvador da pátria”, nas palavras de um dos executivos que compareceram ao evento de maio, com Bolsonaro.